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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #146 (António Guerreiro): O crédito e a fé

A primeira lição que os leigos tiveram de aprender, nos últimos anos, com o clero internacional da economia e das finanças é que o dinheiro, como Deus, é aquilo que falta — o que, através da sua ausência, estrutura o mundo. Por isso, o investimento é esperado nesta terra como uma graça divina concedida pelo sponsor supremo. O dinheiro como “presença real” existe algures, tem de existir (se não, diz-nos o princípio da razão suficiente, existiria o Nada), mas é na falta que ele se manifesta. E o crédito não é senão a fé de que ele existe e é dotado de força messiânica. A segunda lição é que o espaço da fé é cada vez menor e o movimento de secularização avança, pondo fim ao “creditismo”. Com este neologismo, o filósofo alemão Peter Sloterdijk designou um modo de vida que se desenvolveu a partir do Renascimento, baseado na promessa, fundado na antecipação do futuro.

Ora, nesta perspetiva, nós teríamos entrado recentemente, e em estado de choque, numa época em que está cada vez mais bloqueada a capacidade de o crédito abrir um futuro, pois já toda a gente percebeu que os créditos só servem para reembolsar créditos anteriores. Esta contração drástica do futuro transforma o presente em tragédia e introduz uma racionalidade (eis o renascimento do logos grego, dois mil e quinhentos anos depois) que limita os horizontes da fé, isto é, do “creditismo”. Diz Sloterdijk: “Perguntem a um americano como é que ele encara o reembolso das dívidas acumuladas pelo governo federal. A sua resposta será: ‘Ninguém sabe.’” Mas se acabar a fé e começar a vontade de saber, o “creditismo” entra na sua crise final e a nossa civilização choca contra um muro de dívidas. Esta é a imagem moderna do Apocalipse bíblico. “The horror! The horror!”

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 2.7.2011.

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