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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #134 (António Guerreiro)

O retrato do artista enquanto saltimbanco, tão difundido ao longo do século XIX em imagens hiperbólicas e voluntariamente deformadoras, renasceu, no nosso tempo, graças aos ‘festivais de literatura’. Curiosamente, a arte literária, que tinha ficado fora do retrato, tornou-se entretanto o seu modelo de eleição. Os festivais onde o escritor se apresenta como saltimbanco têm os seus antepassados no teatro de feira, nas fêtes foraines, no mundo cómico e farsante das troupes, dos bouffons e dos acrobatas. Pese embora o esforço que muitos participantes fazem para disfarçar essa incómoda linhagem, ela surge com toda a evidência quando entra em ação o grande clown da commedia literária — misto de Pierrot e Arlequim — que se chama Eduardo Pitta. Leia-se o que este rei da irrisão involuntária escreveu no seu blogue (http://daliteratura.blogspot.com) sobre o Festival Literário da Madeira para percebermos o que é esse mundo feérico, onde as proezas funambulescas do escritor se dissipam numa apoteose gastronómica.

Quando ele chega, uma glória fácil espalha a sua luz e converte tudo em luxo, degustação e volúpia. Ou, nas palavras do artista, “gossips & drinks”. Não fosse ele poeta, não fosse a sua exuberância de clown admirada pelos seus pares como um equivalente alegórico do ato poético e aplaudida como um feito da mais genial bouffonnerie (é ele que fala da “versão madeirense de ‘La grande bouffe’”) e ninguém lhe perdoaria a licenciosidade com que transforma um festival literário num piquenicão para “happy few” (utilizando uma expressão que lhe é cara). A um festival, mesmo literário, não se pede ascetismo. Mas, para o seu prestígio, não convém a pantomima de um Arlequim que descreve como “grande bouffe” o que os seus anfitriões apresentam como pura substância espiritual.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 9.4.2011.

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