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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #111 (António Guerreiro)

Sobre o Grande-Escritor, a categoria mais elevada do espírito, e a sua palavra verdadeira e inspirada

«O Grande-Escritor, que Musil dizia ser um descendente do príncipe do espírito, tal como os ricos sucederam aos príncipes no mundo da política, desdenha dos factos. “Os factos não me interessam”, diz ele, sem acrescentar, “só as interpretações”, para não parecer que está a citar um velho filósofo alemão de bigode a cair sobre os lábios, que não teve a prospetiva lucidez de o citar a ele. O Grande-Escritor é como o oráculo de Delfos que fala por enigmas e metáforas: “Falei de maneira completamente metafórica, como, aliás, falo de toda a minha vida.” A doutrina talmúdica dos 49 degraus de significação é o único instrumento que nos permite o acesso à verdade mais profunda onde se alojam as palavras, proferições e proposições do Grande-Escritor: “O que eu digo tem de ser tomado não na sua aceção mais superficial mas na verdade mais profunda.” A linguagem do Grande-Escritor não é, em boa verdade, a linguagem humana: é uma linguagem anterior à Queda, pré-babélica, um idioma feito de símbolos, como o livro da Natureza escrito por Deus.

Assim, cada palavra do livro do Grande-Escritor, ainda que se trate do seu livro mais profano (uma longa entrevista), “tem um carácter simbólico”. Daí que “qualquer leitura no sentido literal do que digo ou escrevo é portanto abusiva”. Do ponto de vista do Grande-Escritor, do privilégio que lhe foi concedido de participar da origem divina da palavra, a ficção é uma palavra vil e degradada: “Se me dissessem que escrevia ficção, sentia-me insultado: ficção, que tolice, é o mundo inteiro que a gente mete entre as capas de um livro.” O que, embora não pareça, é exatamente o contrário do que dizia um pequeno-escritor chamado Mallarmé: “O mundo é feito para resultar num livro.”
NOTA — Todas as citações não atribuídas são de António Lobo Antunes.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 4.9.2010.

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