Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #97 (António Guerreiro)

Sobre o arraial das livrarias e a Feira do Livro

«Todos os anos, mal a Feira do Livro acaba, começam os balanços da operação. A contabilidade é sempre comparativa (com o ano ou os anos anteriores), e o critério mais utilizado é o do ‘volume de negócios’. A propósito de um feira que durou quase um mês, ninguém parece interessado em perguntar se as barracas montadas por tanto tempo não afastam, mais do que seria desejável, as pessoas das livrarias (não esqueçamos que é o princípio de uma saudável rede livreira, como garantia da diversidade, que se procurou defender com a lei do preço fixo). Diríamos que há aí um efeito nefasto da feira se achássemos que o arraial que grande parte das livrarias monta o ano inteiro nas suas salas fosse algo a defender contra a feira de rua e em regime de festa popular.

Entre o arraial que não ousa dizer o seu nome e a feira que arranja todos os pretextos para se alongar e perder o carácter de momento sabático há uma guerra civil disfarçada de festa, onde se lançam muitos foguetes para não se ouvirem os disparos, a não ser os dos pequenos livreiros, apanhados entre dois fogos. Esta coisa do mercado dos livros afeiçoou-se primeiro ao espectáculo e já vai, como é visível, no espectáculo grotesco.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 29.5.2010.

Ao pé da letra #96 (António Guerreiro)

Sobre as boas causas que se fixam numa linguagem falsa

«A luta contra a “homofobia”, com o seu dia simbólico comemorado no princípio desta semana, é uma causa justa que se serve de um péssimo discurso. A palavra ‘fobia’, de origem grega, significa um medo irracional de certos objectos e situações. Por exemplo: o medo incontrolável dos répteis ou o pânico que certas pessoas experimentam quando se encontram num espaço fechado. Cooptada pela psicologia e vulgarizada na linguagem corrente, essa palavra teve o mesmo destino de uma outra, posta ao serviço de uma ideologia pedagógica: “trauma”. Ora, aquilo que que um discurso de reivindicação fixou como “homofobia” é, antes, da ordem de preconceito, com origem em códigos sociais, culturais e religiosos muito persistentes (mas não universais nem trans-históricos).

Nos desvios a que foi submetida, até se tornar um discurso imóvel, a “homofobia” cristalizou-se como uma mitologia (no sentido que lhe deu Barthes), um fenómeno relacionado com a gregaridade. Não é que o problema seja inexistente. Mas nenhum problema verdadeiro pode ser combatido com palavras falsas; e nenhuma posição pode ser correcta politicamente se não for correcta do ponto de vista da linguagem.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 22.5.2010.

Ao pé da letra #95 (António Guerreiro)

Sobre imagens poderosas que não valem uma palavra 

«Uma fotografia de dois jogadores do Barcelona, encostados a um carro, em pleno idílio amoroso, teve na semana passada um enorme sucesso no YouTube, depois de ter sido publicada por um jornal inglês. Tal foto é um peremptório desmentido da ideia sem fundamento de que uma imagem vale por mil palavras. Ela exibe, até no olhar enternecido dos fotografados, uma troca íntima de afectos. Mas, no entanto, convida-nos a não acreditar no que vemos: é demasiado evidente para ser verosímil. Considerá-la verdadeira ou falsa depende do modo como a traduzimos através de palavras: “Ibrahimovic e Piqué trocam gestos de amor” ou “Ibrahimovic e Piqué não trocam gestos de amor”.

Dizendo isto, estamos a relacionar o que vemos na foto com dados de facto, exteriores a ela. Apanhados nesta lógica da referência, esquecemos que há ali uma verdade imanente que não precisa de certificação, irredutível às palavras: a eloquente expressão gestual do pathos amoroso. Mesmo que se trate de uma fraude, I pode não amar P e vice-versa, pode não haver uma história por trás da imagem, mas há uma história que a imagem suscita e nenhum desmentido a pode anular: I e P continuarão a amar-se como fantasmas.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 16.5.2010.

Ao pé da letra #94 (António Guerreiro)

Sobre o fascínio de César pelo Reino de Deus

«Muita gente tem manifestado incómodo, por razões pragmáticas, e reprovação, por razões de princípio, com o facto de o Governo e o Presidente da República, na visita do Papa, terem suspendido algumas regras da separação entre a Igreja e o Estado, mostrando-se muito pouco firmes na laïcité – esse conceito que é, na verdade, a versão francesa do secularismo. Seria ingénuo pensar que os nossos governantes cederam a uma genuína vocação religiosa. O que os move, manifestamente, é outra coisa: o fascínio por um poder que mantém a majestade cerimonial e litúrgica; a reverência pela aclamação gloriosa que o Papa representa; a estética do poder que as democracias contemporâneas não admitem.

É nestes momentos que se torna ainda mais evidente o que alguns filósofos têm demonstrado – que os dispositivos políticos da governação moderna, sendo embora construídos com base na ordem do profano e da “religião civil” (Rousseau) e não na do Reino de Deus, situam-se no paradigma da teologia política, segundo aquele princípio enunciado por Carl Schmitt: “Todos os conceitos decisivos da moderna doutrina do Estado são conceitos teológicos secularizados”.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 8.5.2010.

As personagens entre si são os espectadores (Manoel de Oliveira)

«Cahiers. Fala de gestos como expressão de um desejo de possessão, mas há também todo um sistema de olhares, as direcções e os encaixes no interior de um plano, que acompanham isso.
M. de Oliveira.
Sim, é um bocado complicado. O cinema é um pouco circular. É antigo, omnipresente, etc. Tenho mesmo a impressão... chego mesmo a pensar que, por vezes, basta-se a si próprio. Faz as coisas de uma tal forma que chego a pensar esta coisa bizarra: é o grande ecrã que filma e volta a filmar com as suas personagens entre si. Não têm necessidade de pessoas que assistam. Bastam-se a si próprias. É um pouco absurdo. Chegamos a pensar que a personagem existe por si própria e que é tudo assim. As personagens entre si são os espectadores. Uma delas é a sempre a espectadora da outra. Nós estamos aqui, dizem elas, e não temos necessidade do público. O cinema é um jogo de coisas tais que acabamos por pensar que se basta a si próprio. É uma coisa horrível e é absurda.»

«Cahiers. Vouz parlez de gestes comme expression d’un désir de possession mais il y a aussi tout un système des regards, les directions et les emboîtements à l’interieur d’un plan, qui vont de pair avec ça.
M. de Oliveira.
Oui, c’est un peu compliqué. Le cinéma, c’est un peu circulaire. Il est ancien, omniprésent, etc. J’ai même l’impression,... il m’arrive même de penser parfois qu’il se suffit à lui-même. Il fait les choses d’une telle façon qu’il m’arrive de penser cette chose bizarre : c’est le grand écran qui tourne et retourne avec ses personnages entre eux. Ils n’ont pas besoin des gens qui assistent. Ils se suffisent à eux-mêmes. C’est un peu absurde. On arrive à penser que le personnage existe par lui-même et que tout est comme ça. Les personnages entre eux, ce sont des spectateurs. L’un d’eux est toujours le spectateur de l’autre. Nous sommes ici disent-ils, et nous n’avons pas besoin du public. Le cinéma est un jeu de choses telles que nous finissons par penser qu’il se suffit à lui-même. C’est une chose affreuse et c’est absurde.»

«Entretien avec Manoel de Oliveira 
[à propos de Francisca par Charles Tesson et Jean-Claude Biette in Cahiers du cinéma 328, Octobre 1981, p. 15.

Filmes ‘menores’ em Maio


Antônio das Mortes
Glauber Rocha

1969, 98’
2ª, dia 3, 19h30
Cinemateca*, Lisboa


Texasville
Peter Bogdanovich

1990, 123’
2ª, dia 3, 21h30
3ª, dia 4, 19h30 – Cinemateca


Caro Diario
Nanni Moretti
1993, 100’
3ª, dia 4, 19h – Cinemateca


Toutes les nuits
Eugène Green
1999, 112’
Eugène Green
4ª, dia 5, 21h30 – Cinemateca


Le monde vivant
Eugène Green
2003, 70’
Eugène Green
5ª, dia 6, 21h30 – Cinemateca


Belle toujours
Manoel de Oliveira
2006, 70’
2ª, dia 10, 19h – Cinemateca


No quarto da Vanda
Pedro Costa

2000, 180’
Rupturas
2ª, dia 10, 22h – Cinemateca


Le Pont des Arts
Eugène Green
2004, 126’
Eugène Green
6ª, dia 14, 22h – Cinemateca


Land of the Pharaohs
Howard Hawks

1955, 105’
História permanente do cinema
Sáb, dia 15, 15h30 – Cinemateca


Bringing up Baby
Howard Hawks
1939, 102’
4ª, dia 19, 15h30 – Cinemateca


Va zendegi edame darad /
E a vida continua
Abbas Kiarostami

1992, 91’
Rupturas
2ª, dia 24, 22h – Cinemateca


All that heaven allows
Douglas Sirk
1999, 112’
História permanente do cinema
Sáb, dia 29, 19h – Cinemateca


[apenas filmes vistos, sem repetições, em suportes originais]

Ao pé da letra #93 (António Guerreiro)

Sobre especulação e tragédia filosófico-financeira  

«Nas últimas semanas, uma ‘metáfora absoluta’ – a tragédia grega – fez uma caminhada triunfal nos media. Ela seguiu a par de outra que com ela compete em títulos de nobreza na história do pensamento ocidental: a metáfora da especulação. O capitalismo é um sistema sem pretensões filosóficas, mas não se pode subtrair à linguagem da nossa racionalidade. Desta vez, a conjunção das duas metáforas parece obra do destino, não ditado pelos deuses mas pelas ideias trans-históricas. Mal sabem os oráculos desta ideia ‘trágica’ novamente polarizada em solo grego que desde Hölderlin se foi explicitando uma interpretação da tragédia como origem daquilo a que se chamou, depois de Kant, o pensamento especulativo. 

Isto é: especulação e tragédia têm a mesma matriz, algo que a Grécia (e todos nós) fica a saber pela segunda vez: a primeira, por via do idealismo especulativo; a segunda, por via da especulação financeira. Talvez fosse mais correcto admitir, lembrando Marx, que esta metafórica tragédia se dá sob a forma de farsa, mas não advém daí nada que tranquilize porque é sabido que a repetição em farsa pode ser mais terrificante do que a tragédia inicial.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 1.5.2010.


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