«Em qualquer balanço da primeira década do século XXI na área de cinema o primeiro elemento que importa destacar é a da sua profunda reconversão tecnológica, iniciada ainda durante os anos 90 mas que só agora começa a definir de forma mais clara novos modos de produzir, de distribuir e de ver cinema. Embora mais lenta do que inicialmente se previra, a passagem para um paradigma inteiramente digital está hoje praticamente consumada nos vários sectores geradores de imagens em movimento destinadas ao consumo público e/ou privado (ainda que no cinema ela enfrente ainda algumas bolsas de resistência). Deixemos de lado por agora as consequências dessa passagem na própria produção e na natureza dos filmes para nos concentrarmos na maneira como esta enorme mudança tecnológica e industrial – que se encontra paralelo na passagem do cinema mudo ao sonoro no final dos anos 20 do século passado – está a transformar os nossos hábitos enquanto espectadores. Nas salas de cinema esta mudança é tão avassaladora quanto discreta, já que o seu impacto não é, literalmente, visível, ou seja, não é percebido pelo comum dos espectadores enquanto um dado importante para a fruição do espectáculo cinematográfico. A irreversibilidade do sucesso do digital mede-se pelo facto de em si próprio já não ser assunto. Se a projecção em película se manteve inalterada, naquilo que lhe é essencial, durante mais de cem anos de história do cinema foi porque definiu um elevado standard de qualidade técnica que só recentemente foi possível igualar através de outras tecnologia, o digital. Este trouxe como vantagens adicionais potenciar economias de escalas e ser inteiramente adaptável às várias plataformas em que se joga, cada vez mais, o consumo do cinema. | A multiplicação da presença do cinema entre nós através de mais ou menos novos ecrãs (televisor, computador, telemóvel) – se não em detrimento pelo menos em concorrência crescente com o cinema visto em sala – está a tornar o cinema cada vez mais numa questão privada, em contradição com a sua mais forte tradição. Retomando uma velha ideia de Godard, é como se o cinematógrafo dos Lumière, que ao ganhar a batalha contra o cinemascópio de Edison definiu o próprio sentido da evolução do cinema como arte e espectáculo popular assente na ideia de uma comunidade de espectadores, tivesse afinal acabado por perder a guerra. As implicações desta perda de importância da dimensão pública e colectiva do cinema enquanto ritual partilhado e partilhável face à sua versão doméstica e individualizada no imaginário de realizadores e espectadores não são ainda inteligíveis e inequívocas, mas é certo que não deixarão de prolongar algumas das linhas de força que marcaram a produção cinematográfica na entrada do presente século. [...]» Nuno Sena, «E, contudo, ele move-se», Jornal de Letras, 30.12.2009, p. 16. |