Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Interlúdio cognitivista (Raymond Bellour)

«– [...] Existe um paradoxo do cognitivista que reside na própria natureza da ciência que ele queria poder aplicar, e que induz neste sentido a um cientismo (reencontramos, de resto, os sonhos mecanicistas de alguns filmólogos, dos bons tempos da psicologia experimental – é por isso que, diga-se de passagem, a filmologia voltou a estar na moda). Por um lado, o verdadeiro cognitivista sonha com poder exprimir em termos de localizações, de modalidades e quantidades reais (zonas do cérebro, tipos de neurónios, redes associativas, percursos traçáveis, etc.) toda e qualquer operação do filme; por outro, como ainda é impossível, e de qualquer forma problemático, e como não nos podemos satisfazer com puras virtualidades, faz, como outro qualquer, a partir do momento em que volta a cair no filme, tudo o que quer (salvo psicanálise, é verdade!): narratologia, formalismo (russo ou não, ou seja neo), estilística de todo o género, estruturalismo (pré ou pós), ou simplesmente crítica, como outro qualquer, em suma, a análise mais ou menos feliz ou infeliz, de acordo com o seu humor, talento, sensibilidade (se ousarmos empregar tal termo face a tanta “ciência”), convicções variadas (incluindo ideológicas, que não lhe faltam).
– Você diz “ainda”, o que supõe que uma aproximação verdadeiramente científica venha um dia a ser possível. 
– Quem sabe? Henri Michaux bem que sonhava, já em 1942, com ver aquilo a que chamava o “ser fluídico”, é tão belo que tenho que citá-lo: “(...) esses percursos bizarros chamados sentimentos, que não fazem senão aflorar na fisionomia e marcar-se nos actos, um dia, estou convencido que um dia e não tão distante, felizes os valentes que os contemplarão, um dia vê-lo-emos. Veremos, graças a qualquer invenção, os sentimentos, as emoções formarem-se, enlaçarem-se, e os seus mecanismos cada vez mais próximos até se tornarem do interesse de todos os indivíduos. Veremos o amor.*”

* Henri Michaux, «En pensant au phénomène de la peinture», Passages (1950), Œuvres complètes, t. II, Gallimard, 2001, pp. 322-323. 
Mas mesmo que tal se tornasse verdade, e que acabássemos por ver, e portanto por poder até calcular, exprimir em termos verdadeiramente neurobiológicos o efeito do desenrolar de um filme num corpo-cérebro, permaneceria o problema de saber o que fazer desse segundo “filme” científico, que por sua vez seria necessário compreender, situar, quer dizer, interpretar, por mal vista que seja a palavra. E nem falo sequer das distâncias entre os cérebros... Tudo isto me lembra uma recordação dos tempos antigos da análise de filmes. Visitava em Nova Iorque, em meados dos anos 70, o departamento de Film Studies da Universidade de Columbia; evocava os meus problemas de então (parar, anotar, descrever, avaliar, construir, analisar). Pois então acabaram por me dizer: mas é precisamente isso que nós fazemos, análise! E estenderam-me um documento impressionante (tão impressionante que o conservei): cem páginas de decomposição plano a plano dos 72 planos da sequência do duche em PSYCHO, todos redesenhados, codificados, diagramatizados, segundo os eixos, as durações, as luzes, etc., de modo a produzir, a todos os níveis possíveis, equivalentes quantificados e visualizáveis da sequência tornada talvez a mais célebre da história do cinema. Algumas páginas modestas e precisas como introdução (assinadas por Linda Montanti) não diziam em certo sentido mais nada, a não ser que depois de ter sido assim transcrita, contabilizada, meta-esquematizada, essa sequência onde explodia o génio de Hitchcock assustava ainda tanto. Imagino deste modo, num futuro provável ou improvável, milhares, milhões de neurónios assim redistribuídos numa gigantesca partição matemático-musical. »


Raymond Bellour, «Un spectateur pensif», Le corps du cinéma. Hypnoses, émotions, animalités, P.O.L., Paris, 2009, pp. 189-190.

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