Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

No lugar onde havia algo a começar




É muito estranho avaliar, com mera sensibilidade de espectador e não de historiador da cultura, o que envelheceu irremediavelmente num determinado filme. É difícil distinguir, por entre os traços extremamente cansativos, os outros que inesperadamente sobrevivem. Quando o facto é que, muitas vezes, esse movimento de envelhecimento e sobrevivência atravessa os mesmos elementos. Aquilo que é cansativo acaba por se rebelar e encontrar sentido na nossa experiência. Outras vezes, tratam-se infelizmente de signos que já não constituem quaisquer traços de um tempo, mas somente os seus dejectos, aquilo que se tornou praticamente impossível de recolher de maneira frutífera. Porque permanecerão actuais obras que já eram anacrónicas no seu próprio presente? (Por exemplo, no campo musical, não é o singular modo de cantar de Karen Carpenter que a subtrai ao peso, seja favorável ou desfavorável, do extremamente bipolarizado tempo cultural que foi o seu?) Em LIONS LOVE (1969) de Agnès Varda, uma realizadora particularmente desigual e pouco sedimentada em volta de uma estilização autoral, mas sobretudo atenta ao ar do tempo, encontramos destes movimentos paradoxais. A acumulação insane de traços do tempo – o final dos anos 60, com os fluxos do movimento hippie, underground e pop – gritam constantemente na nossa direcção, exibindo a sua então evidente actualidade. Se é, por um lado, quase insuportável nessa saturação dos tiques das personagens e dos clichés musicais e culturais, por outro, o filme procura ir fugindo, e nisso é rico, concentrando-se, por exemplo, sobre as imagens televisivas do assassinato de Robert F. Kennedy.
Deparamos igualmente com um contraste elucidativo entre personagens sem persona cinematográfica alguma, que acabam por se nos tornar simpáticas enquanto pessoas, e outras (ou melhor, uma: a assim chamada Viva) cheias de persona, mas de alguma forma ocas. Estamos em pleno campo da (necessária?) superficialidade do cinema, da sua particular tendência para a bidimensionalidade (a profundidade teatral é insuportável em cinema). Talvez passasse por aqui o objectivo perverso de Varda: produzir um desgaste tal que a avaliação das persona cinematográficas se invertesse, e com ela esta ordem estabelecida entre superficial e profundo. No sentido desta dissolução, LIONS LOVE seria um objecto declaradamente reaccionário e contra o seu tempo. Mas as personagens, a quem no filme se dá aparentemente algum livre arbítrio cinematográfico, têm também o seu poder de revolta. A “superficial” Viva poderá assim, num golpe de génio, produzir um acontecimento que quase reduz todo o filme anterior a pó. Contra a acumulação dos traços histéricos que ela própria ajudou a acumular – a poeira do tempo, vai ela reclamar uma súbita paragem para respirar, exigindo tempo de plano para que isso se torne sensível. Torna assim, de repente e talvez pelo efeito de choque, muito denso aquilo que parecia irresponsavelmente leve e fugaz. E a verdade é que o filme termina irremediavelmente ali, no lugar onde havia algo a começar...

2 comentários:

josé neves disse...

porque será que esta foto, assim colocada e descontextualizada do corpo do filme (que não do que se concretiza no teu texto) me faz lembrar tanto o Syberberg e um dos seus anjos negros?

André Dias disse...

honestamente, José, não sei dizer porquê. vejo o sentido da relação que estabeleces, mas não a sei descrever :)


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