Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias


O que se vê quando as pessoas falam?
Uma conversa com Angela Schanelec, realizadora de MARSEILLE e NACHMITTAG

André Dias – Parece haver uma evolução na sua obra no que respeita à escala dos planos e à natureza dos diálogos. Em PLÄTZE IN STÄDTEN (1998), a sua segunda longa-metragem, encontramos um uso frequente das distâncias médias, com poucos grandes planos, e em MEIN LANGSAMES LEBEN (2001) temos a impressão que as personagens deixam o silêncio instalar-se. Nesse filme, quando a mulher loura está a chorar no banco de jardim, a jovem rapariga de cabelo curto não reage. E conseguimos compreender esse gesto. Trata-se precisamente do oposto em NACHMITTAG (2007), onde as pessoas se lançam verbalmente umas contra as outras. Creio que é precisamente a meio de MARSEILLE (2004) que parece estar o ponto de viragem. Esse filme, com a sua estrutura narrativa extremamente invulgar e, no entanto, clara e nada confusa, está literalmente dividido ao meio. Pensamos que estamos a ver um filme e depois este muda por completo. E não se trata apenas de uma mudança de aproximação, é a própria natureza dos diálogos que muda também. Não lhe parece que, na sua obra, estes se tornaram mais incisivos, mais pessoais e baseados no estado de espírito das personagens? O seu último filme, NACHMITTAG, comporta imensos grandes planos e os diálogos são cada vez mais pesados.

Angela Schanelec – Na minha primeira longa-metragem, DAS GLÜCK MEINER SCHWESTER (1995), as personagens falavam muito, em cenas de diálogo muito longas. Um pouco como em NACHMITTAG. Este foi o meu ponto de partida: os diálogos. Já em ICH BIN DEN SOMMER ÜBER IN BERLIN GEBLIEBEN (1993) [média-metragem da dffb], tinha começado a pensar o filme pelos diálogos, e o que se vê quando se ouvem esses diálogos. Depois, em PLÄTZE IN STÄDTEN, que é completamente concentrado numa jovem rapariga, houve uma viragem. Falei com o Reinhold Vorschneider, o director de fotografia, e disse-lhe que queria fazer as mesmas cenas, mas sem os diálogos. Fazer a partir das imagens. Com MEIN LANGSAMES LEBEN houve novamente outra viragem, porque tive a ideia de construir uma espécie de rede entre muitas pessoas que chegam e partem. Foi a partir dessa estrutura que experimentei a seguir, em MARSEILLE, estar apenas com uma pessoa e ver o que acontece quando a abandonamos, ou quase.
Algo de especial voltou com os diálogos em NACHMITTAG. Tinha este desejo e um interesse muito antigo por Tchékhov, que queria trabalhar. Foi uma oportunidade para voltar ao princípio: o que significa as pessoas falarem? o que se vê quando as pessoas falam? Tchékhov deu-me a coragem... (risos) Soa estranho! Será mesmo coragem? Agora deixo as personagens dizerem o que sentem. Acho que elas querem alcançar o outro. Dou-lhes esse objectivo, procuram-no. Mas não pensam no que o outro irá ou não perceber. O falar tem apenas a ver com elas próprias, não com quem está à sua frente. Têm que falar. Provavelmente também têm a consciência de que falham. {A este propósito, o crítico alemão Ekkerhard Knörer escreveu: «Em NACHMITTAG as conversas não tratam da comunicação, antes da solitária luta dos indivíduos com as palavras, uma luta que é travada na presença de outros.»}
E há também esta grande diferença. Em MEIN LANGSAMES LEBEN aquelas pessoas não se conhecem muito bem. Estão muito sozinhas, e aceitam-no. Em NACHMITTAG é o oposto, conhecem-se desde sempre, o que constitui uma situação e relações completamente diferentes. É também a razão porque falam doutra maneira.


Certos filmes criam-nos dificuldades, não de uma perspectiva moral, mas numa mais simples de aproximação à vida, por neles quase todas as personagens serem más pessoas. Não no sentido do cliché da personagem do mau, mas por elas lidarem com maus sentimentos e haver uma violência psicológica constante. Reconhece esta figura da crueldade em NACHMITTAG? Ao vê-lo, lembrei-me da experiência de alguns filmes de Ingmar Bergman. Por exemplo, em SARABAND, onde quase todas as personagens são pessoas horríveis...



Eu adoro-as! (risos) Mas deixe-me dizer-lhe que não sabia que as adorava. Conheço os filmes de Bergman há muito tempo, mas redescobri-o recentemente. E NACHMITTAG já estava escrito. Não conseguia perceber como não tinha visto aquilo antes. Quer dizer, como era possível fazer aquele tipo de filmes, com aquele lado cruel? Filmes cruéis. E apenas com duas pessoas sentadas à mesa, tudo muito normal... Essa amargura também me interessa. É algo de perigoso, que nos destrói. Penso nisso e quero falar sobre isso. É o importante, e as raízes disso estão não sei onde. Mas, o que pensa você? Foi horrível para si? Que idade tem? Pergunto porque, pela minha experiência, tenho a certeza que eu não teria conseguido fazer este filme há dez anos atrás. É como com o Bergman. Há dez anos atrás, pensava: não havia necessidade! (risos) Fazia-me retrair um pouco. E agora, de repente, há dois anos, fiquei completamente absorvida, envolvida.
Portanto, se refere essa ideia da crueldade, tenho a impressão que percebo um pouco. Mas eu adoro a personagem do filho, a do irmão. É mesmo uma espécie de amor, sendo sincera. Percebo-a também porque tive a sensação que as reacções, o que foi escrito sobre o filme, são um pouco como as coisas que diz. E tenho que aceitá-lo. E percebo-a acerca da mulher, a personagem que eu represento [Irene/Irina Arkádina, a actriz d’«A gaivota» de Tchékhov]. Foi aliás a razão porque quis representá-la. Não queria ter que discutir esse assunto com uma actriz. Compreende o que quero dizer? É verdade que estava igualmente no estado de espírito adequado para a representar. Mas estava mesmo com medo das discussões. Porque é que ela é assim? Tinha que encontrar alguém que a representasse, mas não se pode planear nem reflectir. As pessoas são assim. Ela não pode reagir doutra maneira. Então preferi fazê-la eu própria. Para que ninguém me perguntasse porque é que ela não vê que o filho está a morrer e não faz nada. Não queria ter que responder a estas perguntas.


E quanto à evolução em termos fotográficos, formais? A escala dos planos mudou igualmente. Em NACHMITTAG há mais grandes planos e, em geral, as personagens estão bastante constrangidas pelo quadro. Noutros filmes seus encontramos as pessoas com objectos à volta. Como chegou até aqui?


Marseille / Marselha
Sáb, dia 2.2, 19h - São Jorge
Para NACHMITTAG era muito claro que tínhamos que encontrar uma nova linguagem. Não porque quiséssemos, mas porque o argumento assim o exigia. À medida que o ia escrevendo, tinha a sensação que queria ver as personagens de perto. Não apenas aquele que fala. O que fala ou o outro. Alguém. Portanto, pensámos, falámos, e ocorreu-nos esta ideia de ver uma pessoa e depois ir ter com a outra. E, porque queríamos estar perto, tornou-se claro que só podia haver uma pessoa na imagem e que a outra estava fora.
Assim, a única hipótese, porque não queria cortar, era mover a câmara. Foi assim que chegámos a todos estes movimentos de câmara. Outra razão é que esta foi a primeira vez que não tive trinta ou quarenta cenários diferentes, como em MARSEILLE. Pensei que a casa onde quase toda a acção se passa se iria tornar evidente desde cedo. Antes de NACHMITTAG falávamos sempre da posição da figura no espaço. Fotografávamos o espaço e depois inseríamos a figura. Neste foi mais o movimento de uma pessoa para outra.
Fiz todos os meus filmes com o Reinhold. Tivemos a oportunidade de continuar um filme após o outro. Para mim, é verdadeiramente uma excepção. Não há ninguém com quem trabalhe há tanto tempo. E estamos a ficar velhos! (risos) Faz doze anos desde o primeiro filme em 1995. É mesmo muito tempo. E uma oportunidade.


Os seus filmes são encantadores, como o canto das Sereias a Ulisses, mas difíceis de ver. Porquê? Certamente que não é por serem exibicionistas, pois são justos, como uma peça de roupa está justa ao corpo. Mas não facilitam a experiência de quem os vê. Apesar de serem filmes narrativos de ficção, não permitem que os espectadores se identifiquem com as personagens. São secos, nesse sentido. E pergunto-me como é que, neste nosso mundo de agora, estarão eles a ser recebidos? (risos) Ainda que seja maravilhoso que existam, por serem tão ricos e subtis, mesmo as pessoas que gostam a sério de cinema podem ter dificuldades. O que não é tanto um facto nefasto acerca dos seus filmes, mas mais algo sobre o mundo em que os filmes existem. Como é que o seu trabalho tem vindo a ser acolhido ao longo dos anos?
Tive boas reacções de críticos e dos festivais. Ajudou-me muito que PLÄTZE IN STÄDTEN e MARSEILLE tenham estado presentes na «Un certain regard» [secção do Festival de Cannes], nomeadamente para a Alemanha. Sempre consegui dinheiro para o filme seguinte por causa das reacções ao anterior. Mas nunca tive uma grande audiência. Sempre entre seis e doze mil espectadores, o que, convenhamos, é quase nada. Mas com NACHMITTAG foi a primeira vez que isso mudou, porque os críticos foram um pouco severos. Tive a sensação que eles estavam à espera de uma coisa diferente. Acompanharam-me ao longo do caminho e agora acharam-se no direito de se sentirem defraudados. Disseram: “não era por isto que gostávamos dela!” Pensei: não posso fazer nada. Mas é triste para mim... (pausa) É mesmo mau. Foi uma experiência nova para mim. Houve também críticos e pessoas que se aproximaram, mas foi a primeira vez que tive críticas más, realmente más, por pessoas que normalmente escrevem. Como eu não tenho audiência é-me necessário ler o que escrevem. Trabalho tanto tempo num filme que, depois do filme estar feito, preciso de feedback. Por isso fiquei mesmo estupefacta.


Gostava de saber o que pensa sobre o novo cinema alemão em geral. Consegue situar os seus filmes no contexto cinematográfico de Berlim? E de onde vem, em termos cinematográficos?


Nachmittag
/ Tarde
Dom, dia 3.2, 21h30 - São Jorge
Na verdade, sendo sincera, e não há razão para não o ser, não consigo situá-los nesse contexto. Gosto dos filmes do Ulrich Köhler, que tem muito talento, mas é só. A relação entre mim e os outros realizadores não é assim tão importante. Seria bom talvez que fosse diferente, mais fiel, ou se sentisse uma inspiração, mas isto não é nada evidente só porque vivemos todos em Berlim e tivemos a sorte de nos encontrarmos e falarmos. Se este tipo de encontro verdadeiro me acontece, fico feliz e não me importo se é um filme da Turquia ou uma pessoa na paragem de autocarro. Portanto, se me pergunta pela minha posição neste “círculo”, no sentido da existência dessa fidelidade ou inspiração, tenho que dizer que não.
Para mim, os primeiros foram Bresson e Godard. O terceiro, Philippe Garrel. Isto mesmo no início. Trata-se de uma selecção normal para muitas pessoas. Mas foi assim. Dois filmes mudaram a minha perspectiva, antes de eu fazer cinema: L’ARGENT de Bresson e SAUVE QUI PEUT (LA VIE) de Godard. Colocaram-me nesta direcção. Foi fácil.


Sabe que, mesmo em Portugal, o seu cinema terá...
Muitos inimigos? (risos) Não sei porque é que me rio. É mesmo horrível.



Arquivo / Archive