Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Outros filmes de Junho


Je vous salue Marie
Jean-Luc Godard
1984, 107’
6ª, dia 1, 21h30
Cinemateca, Lisboa

Tini zabutykh predkiv /
Os cavalos de fogo

Serguei Paradjanov
1965, 95’
Sáb, dia 2, 19h
Cinemateca

Samma no aji / O gosto do saké
Yasujiro Ozu
1962, 112’
Sáb, dia 2, 21h30
Cinemateca

The magnificent Ambersons
Orson Welles
1942, 88’
Sáb, dia 9, 22h
Cinemateca

The birth of a nation
D. W. Griffith
1915, 189’
2ª, dia 18, 22h
Cinemateca

Utamaru o meguru gonin no onna /
Cinco mulheres em volta de Utamaru

Kenji Mizoguchi
1946, 92’
Sáb, dia 23, 15h30
Cinemateca

Moartea domnului Lazarescu /
A morte do Sr. Lazarescu

Cristi Puiu
2005, 153’
Mostra de Cinema Romeno
Dom, dia 24, 21h45
Quarteto, Lisboa

White dog
Samuel Fuller
1982, 90’
6ª, dia 29, 21h30
Cinemateca

O cinema é parte do mundo

Não é certo que a iniciação de um realizador se faça a partir da sua solidão acompanhada de câmara. Embora a amplitude da expressão cinematográfica passe igualmente pela experiência que cada um faz, nem que seja por uma vez, do acto de fazer um filme (e não apenas pelas obras maiores dos maiores cineastas). Para que alguém se possa confrontar à matéria cinematográfica de modo a vincular-se a ela, a encontrar nela vocação e trabalho, é essencial que seja bem limitada a quantidade de elementos com que tem de lidar. Por fundamental que seja a multiplicidade a enfrentar, importa que esta não seja aterradora, que permita um entendimento dos elementos. Um pouco, no fundo, como no malabarismo. Demasiados objectos cinematográficos no ar, não sujeitos à composição, acabam por cair no chão.
Esta série de pequenos filmes em torno da vida numa região rural do norte da Tailândia que constitui o filme ‘Reanglao jak meangnue / Stories from the North’ (2006) de Uruphong Raksasad começa precisamente por figurar essoutra multiplicidade demente que a grande cidade impõem e que podemos supor impeditiva do gesto que o realizador deseja. Não admira então que se tratem de esboços cinematográficos oriundos do país longínquo, tantas vezes imaginário, das memórias de infância campestre. É desse ambiente altamente controlado e reduzido, carregado também de uma sentimentalidade já presente e a estirpar, que o realizador tem de arrancar o seu esforço de composição. Assim, este conjunto de pequenos retratos de existências campestres, marcadas em geral pela solidão, tédio e pobreza, corresponde antes de mais ao próprio gesto cinematográfico de Uruphong Raksasad, que dá a entender ter procurado fugir da indústria cinematográfica tailandesa em prol de um cinema mais pequeno. Mesmo que o realizador o afirme, não é evidente que haja neste filme uma qualquer apologia da bucólica vida campestre que exceda as condições do próprio gesto cinematográfico. Precisamente, o contraste entre a calma da vida campestre e o rebuliço de tom citadino aparece quando a expressão cinematográfica é, por assim dizer, mais desajeitada. Quando, por incapacidade, se deixa figurar a intenção – La volonté, mort de l'Art (Michaux).

O realizador Uruphong Raksasad tinha, segundo creio, experiência de montagem e pós-produção prévia à feitura deste seu primeiro filme. Encontramos um bom virtuosismo de montagem em alguns dos episódios, embora nem sempre acompanhado pelos movimentos de câmara ou enquadramentos, que, apesar da reserva geral, se deixam cair uma vez ou outra na tentação de enfatizar. Como superior exemplo desse virtuosismo libertador da montagem, no episódio dedicado a um músico e ao seu duplo, a contraposição sucessiva entre este a tocar na solidão da sua cabana à noite, num preto e branco rugoso, e a sua sombra quieta e silenciosa, a cores. Ou a abstracção do episódio das crianças que quietas de noite contam estórias de meter medo em contraponto à lua. São de momentos assim simples, que se pressente serem ao mesmo tempo altamente encenados, que nasce muitas vezes o encanto dos episódios ou das personagens deste filme, e menos de uma qualquer veracidade documental contemplativa.
É sempre demasiado simplista interpretar o documentário como a acção cinematográfica estritamente não-interventiva. Parece-me muito salutar que o espectador se pergunte como foi a câmara parar aquele lugar e momento preciso, que sentido milagroso de oportunidade levou o realizador àquela presença cinematográfica. A consciência da complexidade e ambiguidade inerente à feitura dos filmes não tem de obstar à sua fruição, pelo contrário. (Se assim fosse, seríamos tentados a perseguir as ingenuidades do espectador como alvo de denúncia. Não é o caso). Obviamente que os híbridos cinematográficos entre a ficção e o documentário não são apenas interessantes porque jogam com as expectativas do público em relação ao género, mas sobretudo porque libertam novos procedimentos que vêm arejar a expressão cinematográfica. Pede-se a uma pessoa qualquer que se está filmar que repita uma acção. Encena-se o mundo sem código interpretativos demasiado rígidos. Promove-se uma confusão criadora e só secundariamente se confundem os registos.
No mais espantoso destes pequenos filmes – ‘The way / O caminho’ (de 2005, que terá passado em Vila do Conde), começamos por entrever, na escuridão da penumbra do anoitecer, a berrante t-shirt cor-de-rosa de um miúdo. Aquele corpo atravessa aos saltos um verde e cerrado canavial que tem mais do que a altura de um homem. Aos poucos reconhecemos que o miúdo à nossa frente é carregado às cavalitas por alguém (talvez o pai) vestido de escuro (propositadamente?) que assegura conhecer o caminho e nos indica o seu fim prestes. A câmara segue dificilmente a travessia, perdendo de vez em quando os que segue, por também ela enfrentar as dificuldades que as canas e demais vegetação oferecem, obrigando a cortes bruscos na montagem e estranhas suspensões do som ao silêncio, que dão à rapidez e dureza da travessia a sua justa e áspera expressão cinematográfica. Por fim vislumbra-se o fim do caminho, a saída do canavial, e o miúdo pode na terra retomar o caminho dos seus pés. E é a ele que a câmara segue...

O cinema é parte do mundo, não espelho dele ou seu representante. Por isso o cinema não se permite o tráfico de ideias “temáticas”. Estas rapidamente se desvanecem por não consolidadas, por serem afinal partes não necessárias da composição cinematográfica, meros excedentes. O “estado” a que o mundo se presta num filme como ‘Reanglao jak meangnue / Stories from the North’ é mais o de uma irredutibilidade de uma aceite solidão existencial, que corresponde à do gesto criativo, do que o de uma qualquer nostalgia por uma comunhão idealizada com a natureza. Não há, à partida, e por muito que isso nos custe, mais autenticidade na solidão, tédio e pobreza do campo que deixámos do que na solidão, tédio e pobreza da cidade a que estamos confinados.

(publicado originalmente em o Estado do Mundo a convite da gentil Sara Pais)


MNEMÒSINE   Non ti sei chiesto perché un attimo, simile a tanti del passato, debba farti d'un tratto felice, felice come un dio? Tu guardavi l'ulivo, l'ulivo sul viottolo che hai percorso ogni giorno per anni, e viene il giorno che il fastidio ti lascia, e tu carezzi il vecchio tronco con lo sguardo, quasi fosse un amico ritrovato e ti dicesse proprio la sola parola che il tuo cuore attendeva. Altre volte è l'occhiata di un passante qualunque. Altre volte la pioggia che insiste da giorni. O lo strido strepitoso di un uccello. O una nube che diresti di aver già veduto. Per un attimo il tempo si ferma, e la cosa banale te la senti nel cuore come se il prima e il dopo non esistessero piú. Non ti sei chiesto il suo perché?

Cesare Pavese, «Le Muse»,

Dialoghi con Leucò (1947)
MNEMÓSINE   Não te perguntaste porque é que um instante, semelhante a tantos outros no passado, deve de repente fazer-te feliz, feliz como um deus? Tu fitavas a oliveira, a oliveira na vereda que percorreste todos os dias durante anos, até que chega o dia em que o mal-estar te deixa, e tu acaricias o velho tronco com o olhar, como se fosse quase o amigo reencontrado e te dissesse justamente a única palavra que teu coração esperava. Outras vezes é o olhar de um passante qualquer. Outras vezes a chuva que insiste há dias. Ou o chio estridente de um pássaro. Ou uma nuvem que dirias já ter visto. Por um instante pára o tempo, e aquela coisa banal tu sente-la no coração como se o antes e o depois já não existissem. Não perguntaste o porquê disto tudo?

(tradução de José Colaço Barreiros)
MNEMOSYNE   Haven’t you wondered why an instant, similar to so many in the past, suddenly makes you happy, happy as a god? You were looking at the olive tree, the olive tree on the path that you take every day for years, and one day your annoyance goes away, and you caress the old trunk with your eyes, as though it were a refound friend who said to you just the one word your heart was waiting for. Other times it’s the glance of some passer-by. Other times the rain which goes for days. Or the sharp cry of a bird. Or a cloud you thought you’d already seen. For an instant time stops, and you feel the banal thing in your heart as though before and after no longer exist. Have you not wondered why?

(translated by Tag Gallagher)


tradução francesa e
legendagem de Danièle Huillet

Tu ne t'es jamais demandé
pourquoi un instant,

semblable à tant d'autres du passé

doive te rendre d'un coup heureux,
heureux comme un dieu?

Tu regardais l'olivier,
l'olivier sur le sentier

que tu as parcouru chaque jour
pendant des années et vient le jour

où l'ennui te quitte,

et tu caresses le vieux tronc du regard,

quasi comme s'il était un ami retrouvé
et te disait proprement la seule parole

que ton coeur attendait.

D'autres fois

c'est l'oeillade d'un passant quelconque.

D'autres fois la pluie

qui insiste depuis des jours.

Ou le cri bruyant d'un oiseau.
Ou un nuage

que tu dirais avoir déjà vu.

Pour un instant
le temps s'arrête et la chose banale

tu la sens dans le coeur
comme si l'avant et l'après

n'existaient plus.

Tu ne t'es pas demandé le pourquoi?

legendagem portuguesa

Não te perguntaste
porque é que um instante,

semelhante a tantos outros passados,

te tornou de repente feliz
feliz como um deus?

Olhavas a oliveira,
a oliveira na vereda

que percorreste todos os dias
durante anos e chega o dia

em que o tédio te deixa,

e acaricias o velho tronco com o olhar,

quase como se fosse um amigo reencontrado
que te dissesse gentilmente a única palavra

que o teu coração esperava.

Outras vezes,

foi o olhar de um qualquer viandante.

Outras, a chuva

intermitente durante dias.

Ou o grito ruidoso de um pássaro.
Ou uma nuvem

que dirias já ter visto.

Por um instante,
o tempo pára e a coisa banal

sente-la no coração
como se o antes e o depois

já não existissem.

Não te perguntaste porquê?


Quei loro incontri (2006) de Straub-Huillet
4ª, dia 23, 21h30 - Fundação Calouste Gulbenkian, Grande Aud.


Masterclass de Wang Bing
Realizador de Tie Xi Qu/West of tracks (2004)

Dom, dia 13 de Maio, 17h
Centro de Arte Moderna da FCG, Sala Polivalente - Lisboa

entrada livre, no limite dos lugares disponíveis | tradução simultânea

(cf.
encontro com Alan Bergala, entrevista)

Comissários dos lugares

«Se o século XIX e a primeira metade do século XX foram a época das narrações sobre a consciência infeliz à procura da sua libertação, vivemos hoje numa época em que a consciência mais ou menos satisfeita aprendeu a arte de acomodar o seu espaço. O homem moderno é uma espécie de “curador” [...], ou seja, um comissário de exposição do espaço que ele próprio habita. Cada homem tornou-se uma espécie de curador de museu. Criar a sua própria instalação é, por assim dizer, uma metaprofissão que toda a gente é obrigada a exercer. A inocência do habitat tradicional foi perdida para sempre. Depois da destruição real e da prova de destrutibilidade de todas as coisas, cada habitante de qualquer apartamento, de qualquer cidade, de qualquer país, tornou-se, ou foi forçado a tornar-se, numa espécie de comissário do seu lugar.»
Peter Sloterdijk,
«Comment Peter Sloterdijk révolutionne nos horizons de pensée»,
entrevista por Fabrice Bousteau e Jonathan Chauveau,
Beaux Arts, n.º 246, Novembro de 2004 [obrigado à Cristina]

Histeria anti-tecnológica e humanolatria | Anti-technological hysteria and humanolatry

«A histeria anti-tecnológica que segura partes substanciais do mundo ocidental entre as suas garras é um produto da decomposição da metafísica, pois agarra-se a falsas classificações do ser de modo a revoltar-se contra processos através dos quais estas classificações são ultrapassadas. É reaccionária no sentido essencial da palavra, porque expressa o ressentimento da bivalência ultrapassada por contraste com a polivalência que não consegue compreeender. Isto aplica-se sobretudo aos hábitos da crítica do poder, que são ainda inconscientemente inspirados pela metafísica. No esquema metafísico, a divisão do ser em sujeito e objecto é espelhada na diferença entre senhor e escravo, tal como na de trabalhador e material. Assim, dentro desta disposição, a crítica do poder pode apenas ser articulada como resistência do lado-objecto-escravo-material suprimido contra o lado-sujeito-senhor-trabalhador. Mas dado que a afirmação "existe informação", ou "existem sistemas", está no poder, esta oposição já não faz sentido, e está a desenvolver-se cada vez mais num simulacro de conflito. Esta histeria é efectivamente a procura de um senhor contra o qual se levantar: não pode ser excluído que o senhor enquanto efeito esteja em processo de dissolução, e mais do que qualquer outra coisa sobreviva enaquanto o postulado do escravo fixado na rebelião - como Esquerda historicizada ou um humanismo pronto para o museu. Por contraste, um princípio vivo da ala esquerda necessitaria de se reinventar constantemente através de dissidência criativa. Do mesmo modo, o pensamento do homo humanos pode apenas manter-se em resistência poética contra os reflexos metafísicos da humanolatria.»


A técnica na sua relação com o humano
Conferência de Peter Sloterdijk
5ª, 3 de Maio, 21h30
Serralves, Porto
The anti-technological hysteria that holds large parts of the western world in its grip is a product of the decomposition of metaphysics, for it clings to false classifications of being in order to revolt against processes in which these classifications are overcome. It is reactionary in the essential sense of the word, because it expresses the ressentiment of outdated bivalence as contrasted with a polyvalence that it cannot understand. This applies above all to the habits of the critique of power, which are still unconsciously motivated by metaphysics. In the metaphysical schema, the division of being into subject and object is mirrored in the difference between master and slave, as well as that between worker and material. Thus within this disposition, critique of power can only be articulated as resistance of the suppressed object-slave-material-side against the subject-master-worker-side. But since the statement "there is information", alias "there are systems," is in power, this opposition no longer makes sense, and is developing ever more into a phantom of conflict. This hysteria is indeed the search for a master to stand up against: it cannot be excluded that the master as an effect is in the process of dissolving, and more than anything else lives on as the postulate of the slave fixated on rebellion - as the historicized Left or a humanism that is ready for the museum. In contrast a living left-wing principle would need to constantly reinvent itself through creative dissidence. Likewise, the thought of homo humanus can only maintain itself in poetic resistance against metaphysical reflexes of humanolatry.»

Peter Sloterdijk, «The Operable Man. On the Ethical State of Gene Technology», translated by Joel Westerdale and Günter Sautter

Outros filmes de Maio


Le amiche
Michelangelo Antonioni
1955, 104’
Sáb, dia 5, 19h
Cinemateca, Lisboa

Sanxia haoren / Natureza morta
Jia Zhang Ke
2006, 108’
14h30, 17h, 19h25, 22h, (00h30)
Medeia - King 1, Lisboa

Der blaue Engel / O anjo azul
Josef von Sternberg
1930, 110’
3ª, dia 15, 15h30
Cinemateca

Bambi
Walt Disney e David Hand
1947, 87’
Sáb, dia 19, 11h - Cinemateca Júnior
Salão Foz (Restauradores), Lisboa

L’année dernière à Marienbad
Alain Resnais
1961, 93’
Sáb, dia 19, 22h
Cinemateca

Nanguo zaijan, nanguo / Goodbye
South, goodbye

Hou Hsiao Hsien
1996, 112’
3xHHH
Dom, dia 20, 18h30
Culturgest, Lisboa

Quei loro incontri
Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
2006, 68’
Todo o mundo é um filme
4ª, dia 23, 21h30
Gulbenkian, Lisboa

Stunde null / A hora zero
Edgar Reitz
1977, 108’
5ª, dia 24, 15h30
Cinemateca

Banshun / Primavera tardia
Yasujiro Ozu
1949, 108’
Sáb, dia 26, 21h30
Cinemateca


Arquivo / Archive