Não é certo que a iniciação de um realizador se faça a partir da sua solidão acompanhada de câmara. Embora a amplitude da expressão cinematográfica passe igualmente pela experiência que cada um faz, nem que seja por uma vez, do acto de fazer um filme (e não apenas pelas obras maiores dos maiores cineastas). Para que alguém se possa confrontar à matéria cinematográfica de modo a vincular-se a ela, a encontrar nela vocação e trabalho, é essencial que seja bem limitada a quantidade de elementos com que tem de lidar. Por fundamental que seja a multiplicidade a enfrentar, importa que esta não seja aterradora, que permita um entendimento dos elementos. Um pouco, no fundo, como no malabarismo. Demasiados objectos cinematográficos no ar, não sujeitos à composição, acabam por cair no chão. Esta série de pequenos filmes em torno da vida numa região rural do norte da Tailândia que constitui o filme ‘Reanglao jak meangnue / Stories from the North’ (2006) de Uruphong Raksasad começa precisamente por figurar essoutra multiplicidade demente que a grande cidade impõem e que podemos supor impeditiva do gesto que o realizador deseja. Não admira então que se tratem de esboços cinematográficos oriundos do país longínquo, tantas vezes imaginário, das memórias de infância campestre. É desse ambiente altamente controlado e reduzido, carregado também de uma sentimentalidade já presente e a estirpar, que o realizador tem de arrancar o seu esforço de composição. Assim, este conjunto de pequenos retratos de existências campestres, marcadas em geral pela solidão, tédio e pobreza, corresponde antes de mais ao próprio gesto cinematográfico de Uruphong Raksasad, que dá a entender ter procurado fugir da indústria cinematográfica tailandesa em prol de um cinema mais pequeno. Mesmo que o realizador o afirme, não é evidente que haja neste filme uma qualquer apologia da bucólica vida campestre que exceda as condições do próprio gesto cinematográfico. Precisamente, o contraste entre a calma da vida campestre e o rebuliço de tom citadino aparece quando a expressão cinematográfica é, por assim dizer, mais desajeitada. Quando, por incapacidade, se deixa figurar a intenção – La volonté, mort de l'Art (Michaux).
O realizador Uruphong Raksasad tinha, segundo creio, experiência de montagem e pós-produção prévia à feitura deste seu primeiro filme. Encontramos um bom virtuosismo de montagem em alguns dos episódios, embora nem sempre acompanhado pelos movimentos de câmara ou enquadramentos, que, apesar da reserva geral, se deixam cair uma vez ou outra na tentação de enfatizar. Como superior exemplo desse virtuosismo libertador da montagem, no episódio dedicado a um músico e ao seu duplo, a contraposição sucessiva entre este a tocar na solidão da sua cabana à noite, num preto e branco rugoso, e a sua sombra quieta e silenciosa, a cores. Ou a abstracção do episódio das crianças que quietas de noite contam estórias de meter medo em contraponto à lua. São de momentos assim simples, que se pressente serem ao mesmo tempo altamente encenados, que nasce muitas vezes o encanto dos episódios ou das personagens deste filme, e menos de uma qualquer veracidade documental contemplativa. É sempre demasiado simplista interpretar o documentário como a acção cinematográfica estritamente não-interventiva. Parece-me muito salutar que o espectador se pergunte como foi a câmara parar aquele lugar e momento preciso, que sentido milagroso de oportunidade levou o realizador àquela presença cinematográfica. A consciência da complexidade e ambiguidade inerente à feitura dos filmes não tem de obstar à sua fruição, pelo contrário. (Se assim fosse, seríamos tentados a perseguir as ingenuidades do espectador como alvo de denúncia. Não é o caso). Obviamente que os híbridos cinematográficos entre a ficção e o documentário não são apenas interessantes porque jogam com as expectativas do público em relação ao género, mas sobretudo porque libertam novos procedimentos que vêm arejar a expressão cinematográfica. Pede-se a uma pessoa qualquer que se está filmar que repita uma acção. Encena-se o mundo sem código interpretativos demasiado rígidos. Promove-se uma confusão criadora e só secundariamente se confundem os registos. No mais espantoso destes pequenos filmes – ‘The way / O caminho’ (de 2005, que terá passado em Vila do Conde), começamos por entrever, na escuridão da penumbra do anoitecer, a berrante t-shirt cor-de-rosa de um miúdo. Aquele corpo atravessa aos saltos um verde e cerrado canavial que tem mais do que a altura de um homem. Aos poucos reconhecemos que o miúdo à nossa frente é carregado às cavalitas por alguém (talvez o pai) vestido de escuro (propositadamente?) que assegura conhecer o caminho e nos indica o seu fim prestes. A câmara segue dificilmente a travessia, perdendo de vez em quando os que segue, por também ela enfrentar as dificuldades que as canas e demais vegetação oferecem, obrigando a cortes bruscos na montagem e estranhas suspensões do som ao silêncio, que dão à rapidez e dureza da travessia a sua justa e áspera expressão cinematográfica. Por fim vislumbra-se o fim do caminho, a saída do canavial, e o miúdo pode na terra retomar o caminho dos seus pés. E é a ele que a câmara segue... |