Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Psiu!




dedicado ao Luís Miguel Correia e ao Luís Miguel Oliveira

Qual o valor do silêncio? Sentimo-lo como pesado, por vezes, mesmo quando as palavras nos trazem apenas um cansaço imenso em que nos parecem fazer vertigens. Como se numa impotência, numa retracção, num movimento de fechamento que tem como intuito proteger-nos, houvesse apenas uma vontade de silêncio... Por sua vez, este não se dá sobretudo quando nada se ouve. É no intervalo entre aquilo que se ouve, entre duas coisas que sensivelmente se fazem ouvir, que o silêncio se torna definitivamente perceptível.
Por exemplo, neste divertido (digo eu) excerto de Francisca (1981) de Manoel de Oliveira, em que a personagem de Camilo (des)conversa com um amigo na ópera, o que nos dá a sensação do silêncio? Certamente que a brilhante utilização da música. Mas repare-se também como, para além da natureza relativamente pomposa do diálogo, nada parece definir melhor estas personagens do que o modo como se calam somente quando a música se exalta, porquanto permanecem em murmúrio audível quando ela está contida. Eis aqui em acção um humor muito fino...
(A propósito de humor, esta cena comporta igualmente a típica languidão dos corpos nos filmes de Oliveira que Herman José outrora tão bem captou. Se é certo que daí se formou depois um cliché infeliz, não é menos certo que esse humor verdadeiramente funcionava, precisamente porque captava em profundidade uma expressão única que apenas se encontrava nos filmes de Oliveira e que era uma qualidade neles irredutível quanto a uma presença singular dos corpos, que tinha, entre outras coisas, que ver com a sua lentidão. Hoje, quando se refere a Oliveira, Herman José consegue apenas desdenhar, como se soubesse mais do que aquilo que é capaz de captar, e isso é apenas prova da sua enorme falência, mais do que a de Oliveira, certamente).
Outro aspecto divertido deste excerto prende-se com a etologia da sala de espectáculos em geral. O comportamento em torno da exigência de silêncio e da não-perturbação, compreensivelmente necessários para a fruição estética, por exemplo no cinema, atinge por vezes foros de insanidade. Do outro lado da trincheira parece haver uma sobressaliência, uma consciência extrema e tomada de um prazer perverso, por parte dos que perturbam a percepção fechada, com sacos de plásticos crepitantes (homens), desdobrar infinito de rebuçados (mulheres) ou relógios que parasitam o nosso ouvido, ou ainda por aquelas pessoas que não sabem sussurrar, falando ao ouvido das outras como se estivessem ainda a uma enorme distância, etc. Mas o pior mesmo são afinal os que da perturbação se servem para policiarem os outros espectadores, fazendo da sua exigência de silêncio um espectáculo em si, agora da miséria comezinha e das patologias mentais à espreita.


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