Porque apesar da comunidade da arte séria ser pequena, não é exclusiva – não do modo como uma elite é exclusiva. É esotérica, mas o segredo está aberto a qualquer um.
(Stanley Cavell)
«Toda a gente aceita que os críticos de literatura, artes plásticas ou de música (erudita) sejam “elitistas”. A um crítico de cinema – “não gostam de cinema comercial”, “gostam de filmes franceses”, ou pior, “iranianos”, ou pior ainda, “portugueses” – o “elitismo”, a divergência para com o grande público é vista como desqualificação. Mas é claro que a crítica é elitista, e foi-o sempre. Os Cahiers do cinéma são elitistas, a revista Cinéfilo era elitista, a Film comment é elitista, a crítica no Libération ou no Guardian, publicações generalistas, é elitista. No dia em que o gosto da crítica estiver sistematicamente alinhado com o gosto do grande público alguém está a mais (e não é o grande público).»
Luís Miguel Oliveira, «Os Óscares, o público, os críticos», Público-Ípsilon, 23.2.2007, p. 7 No interior de um debate, talvez não haja erro táctico mais grave do que deixar que outros definam o sentido dos termos com que pretendem caracterizar a nossa acção. Para mais, existem palavras que nos merecem particular repugnância. A nossa “sensibilidade política”, precisamente, não as pode tolerar. Solta-se então uma espécie de pudor agressivo, quando perante esta conjunção de circunstâncias nos vemos encurralados numa definição absolutamente insuportável que exige esclarecimento. Tomemos a palavra “elitista”, que conheceu um assinalável transplante de sentido. De uma definição assente na prática da «discriminação na base da habilidade ou atributos», de âmbito eminentemente económico ou político, que não interessa aqui pormenorizar, passou a usar-se este termo de uma forma muito mais corriqueira e pejorativa, que reflecte simplesmente uma atitude, predominantemente cultural, que «não toma em conta as preferência de uma maioria» ou «um modo de pensar arrogante ou uma desconsideração pelo público geral não pertencente à elite» (Wikipedia). Na verdade, parece hoje que se pode e deve chamar de “elitista” a alguém que simplesmente não partilha os gostos da maioria suposta. Por exemplo, apesar da raridade, um crítico de cinema. É pelo esquecimento daquele sentido “discriminatório” que precede o uso corrente que, quando um crítico de cinema como Luís Miguel Oliveira vem auto-reivindicar essa designação de “elitista” como inerente e até historicamente fundada, cobrindo inclusive a quase totalidade da crítica cinematográfica, tal me parece absolutamente estranho e sem a possibilidade de partilha. Não fazendo crítica, não a concebendo sequer como ainda possível, nem vislumbrando na quase totalidade das suas múltiplas instâncias actuais, nomeadamente na generalidade dos blogues (sendo Luís Miguel Oliveira precisamente uma das excepções), senão repetições, porventura necessárias, dos gestos cristalizados de uma forma crítica morta (as famosas estrelinhas e as enxurradas de adjectivos), não posso, no entanto, de deixar de me sentir abrangido pela designação. Não serei eu, não será este blogue todo ele também uma prática “discriminatória”, segregadora e excluente, não só de toda a “actualidade” cinematográfica, mas de uma maioria de público que requer o reconhecimento da sua não-singularidade? Deixemos de lado a tendência infeliz de se procurar definir uma prática não pelo que efectivamente esta faz, ou seja, aquilo que constitui a sua afirmação, mas pelo que esta ao mesmo tempo supostamente negará. Não deverá a questão principal ser recolocada em torno das práticas efectivas de discriminação? A quem assentará melhor o sentido que “elitista” guarda de “discriminatório”, quando o sentido contemporâneo parece ser simplesmente o da proibição da dissenção? Será aos críticos, por estes eventualmente não gostarem de Babel, ou às outras instâncias comunicacionais emergentes que exigem esse reconhecimento como uma espécie de vínculo democrático, um unanimismo ou coincidência entre “grande público”e “entendidos”? Será, por exemplo, a Cinemateca “elitista”, por nas suas salas se conseguirem ver vários filmes pelo preço de um bilhete numa sala normal, para mais sem ter que aguentar com a publicidade? Há que exigir então àqueles que empregam o termo “elitista” que explicitem as práticas discriminatórias correntes, sociais ou culturais, que, segundo eles, acontecem quando aqueles que escrevem em jornais como críticos não apreciam um determinado filme. Como contraponto da discriminação, se há algo que caracteriza explicitamente a posição relativa à “economia do cinema” por parte de cineastas habitualmente, e erradamente, tomados como “elitistas”, como Straub-Huillet ou Pedro Costa, por exemplo, é um constante e, estamos em crer, verdadeiro lamento por os seus filmes não chegarem a todos; ou seja, por a individualidade qualquer, que é exactamente o não-público que constitui uma pessoa qualquer, não chegar a ter condições para ver os seus filmes. A posição de Luís Miguel Oliveira tem a atenuante do debate se fazer em torno de bases paupérrimas e inúmeros equívocos. Se os críticos de cinema não são particularmente sensíveis aos filmes com mensagem política (como diz Daniel Oliveira no mesmo Público) não é, em primeiro lugar, tanto pela “política” como pela própria evidência da “mensagem”. Não sente qualquer cinéfilo que se preze a urgência de fugir a sete pés de qualquer “mensagem” explícita? Há, aliás, no cemitério do cinema, uma taxa brutal de ocupação de equívocos cinematográficos (e, consequentemente, também políticos), obras inanes que transbordam explicitamente de mensagens, muitas vezes evidências discursivas de natureza política, que excedem ou contrariam a matéria cinematográfica, e que são hoje (não seriam já no seu tempo?) completamente insuportáveis. Fica a pergunta: se tanto se preocupam com a “globalização”, porque preferem Babel a Ten de Kiarostami, entre tantos outros? Não será por o primeiro apenas confirmar o que já julgam saber sobre a dita? Quem quer retirar ao cinema espaço de pensamento?
[Adenda: Caro Luís, o único momento em que me sinto crítico é aquele em que disparo contra o meu próprio regimento. Na verdade, interessam-me as divergências próximas. Há algo de falso nas distantes; como se estivessem numa margem demasiado afastada para serem produtivas, exigindo muitas explicações (ou intermináveis discussões) para o pouco tempo que temos. Não há menosprezo, mas também não quero converter ninguém. E não imaginas o quanto me deixou feliz não teres malentendido o meu gesto. Algo que é deveras raro no nosso contexto, onde tantas vezes se confunde uma simples divergência com uma questão pessoal. E a nossa estará certamente concentrada na letra, e não no espírito da coisa. Uma letra, no entanto, que me pareceu irredutível; por isso tive de a explicitar. De resto, também assino por baixo o que escreveste naquele artigo. E acredito na tua e noutras hipóteses de aliança. Cf. a explicação de Luís Miguel Oliveira.] | For while the community of serious art is small, it is not exclusive – not the way an elite is exclusive. It is esoteric, but the secret is open to anyone.
(Stanley Cavell)
«Everybody accepts that literary, fine arts or (classical) music critics are “elitists”. With film critics – “they do not like commercial cinema”, “they like French films”, or worse, “Iranian”, or even worse, “Portuguese” – “elitism”, the disagreement with larger audiences, is seen as a disqualification.But of course criticism is elitist, and always was. The Cahiers of cinéma are elitist, Cinéfilo magazine was elitist, Film comment is elitist, the critics in Libération or in Guardian, larger audiences’ publications, are elitist. When the day comes that criticism taste is systematically aligned with the taste of larger audiences’, then someone’s in the way (and it isn’t larger audiences). »
Perhaps there isn't a worse tactical mistake, while in a dispute, than the one of letting others define the meaning of the terms by which they intend to describe our actions. Besides that, there are words which deserve our special repugnance. Our “political sensibility”, precisely, cannot tolerate them. A kind of aggressive reserve gets loose when in front of this combined circumstances, when we see ourselves trapped in an absolutely unbearable definition, one that demands clarification. Let us take the word “elitist”, that has remarkably been transplanted of meaning. From a definition determined by the practice of «discrimination on the basis of ability or attributes», of an eminently economic or political kind, not worthy of mention in detail right now, the term started to be used in a much more current and pejorative way that reflects simply an attitude, predominantly cultural, that «doesn’t take into account the preferences of a majority» or « a general mindset of arrogance or disregard for the general non-elite public» (Wikipedia). In fact, it seems that today one can and must call “elitist” to someone that simply doesn’t share the supposed majority's tastes . For example, the case, although rare, of a film critic. It’s through the oblivion of that “discriminatory” meaning that precedes the current use that, when a film critic as Luís Miguel Oliveira claims himself this “elitist” designation as inherent and even historically established, almost covering the whole of film criticism, such a thing seems to me absolutely strange and without possible connection. Not undertaking in critical writings myself, nor conceiving it as still possible, nor even glimpsing in the almost totality of its multiple contemporary instances, namely in blogs (being Luís Miguel Oliveira precisely one of the exceptions), nothing other than repetitions, perhaps necessary, of crystallized gestures from a deceased criticism feature (the famous stars attributed to a film and the monsoons of adjectives), I cannot, however, but feel enclosed by the designation. Aren’t I, isn’t this blog itself also a “discriminatory”, segregative and excluding practice, not only of all the “present-day cinema”, but also of a majority of audience who requires the recognition of its not-singularity? Let’s leave aside the unfortunate tendency of trying to define a practice, not for what it actually produces, i.e., what constitutes its affirmation, but for what it supposedly denies at the same time. Shouldn’t the ultimate issue be readdressed on the effective practices of discrimination? To whom applies the discriminatory meaning that “elitist” still holds, when its current meaning seems to be simply one of prohibition of dissent? To the critics, for conceivably not liking Babel, or to the other emergent communicational instances that demand the recognition as a kind of democratic bond, a unanimous or greater coincidence between “larger audiences” and “experts”? Is Cinemateca, for instance, “elitist”, for making it possible to see a number of films for the price of a normal screen ticket, without even having to put up with advertising? One has to demand those who use the “elitist” term to specify then the current discriminatory practices, social or cultural, that, according to them, happen when those who write in newspapers as critics do not appreciate a certain film. As a counterpoint to the discrimination, if there is something that explicitly portrays the position of directors on the “economy of cinema” who are usually and wrongfully taken to be “elitists”, like Straub-Huillet or Pedro Costa, for instance, is a constant and, we believe, true lament for their films not coming to all people; i.e., that whatever individual, exactly the non-audience who constitutes any given person, does not arrive at achieving the conditions in order to see their films. Luís Miguel Oliveira’s stance has the extenuating circumstance that the dispute is shaped around a pitiable foundation and innumerable misunderstandings. If film critics are not especially sensible to films with political messages (as Daniel Oliveira puts it, in the same Público) it’s not, primarily, so much because of “politics” itself, and a lot more due to the “message’s” presence. Doesn’t all respectable cinéfils feel the urge to run away from any explicit “message”? There is, by the way, at cinema’s cemetery, a gross occupation rate of cinematographic miscarriages (and, consequently, political miscarriages), inane works that overflow explicitly with messages, often discursive presences of political nature, that exceed or counter the cinematographic matter, and are today (weren't already at their time?) completely insupportable. Let us leave a question: if so many are worried about “globalisation”, why do they prefer Babel to Ten by Kiarostami, among many others? Is it not because the former only confirms what they already think they know about globalisation? Who wants to confiscate cinema’s space of thought?
[Addenda: Dear Luís, the only time I feel like a critic is when I shoot at my own regiment. Actually, I’m interested in close disagreements. There’s something false about the distant ones; as if they were in a margin too far away to be productive, demanding many explanations (or ceaseless discussions) for the little time we have. There’s no disdain here, but I’m also not into converting anybody. And you can’t imagine how it made me happy that you didn’t misunderstood my gesture. Something that is indeed very rare in our context, where so many times one confounds a simple disagreement with a personal problem. And ours is certainly concentrated on the letter, and not on the spirit of it. A letter, however, that seemed irreducible to me; I had therefore to make it explicit. After all, I make your article words mine as well. And I believe in yours and other hypothesis of alliance. Cf. Luís Miguel Oliveira's explanation.] |