Falsa memória
Un condamné à mort s'est échappé ou Le vent souffle où il veut (1956) de Robert Bresson
«O outro realizador para quem o campo vazio, e portanto o espaço-fora-de-campo que ele implica, têm uma importàneia capital, é Robert Bresson. Isto é sobretudo sensível em Fugiu um Condenado à Morte e em Pickpocket. O plano do Condenado à Morte em que Fontaine vai matar a sentinela é particularmente flagrante a este respeito. É um plano muito aproximado que nos mostra primeiro Fontaine, a três quartos de costas, encostado a urna parede muito perto do ângulo onde sabemos estar a sentinela. Ganhando coragem, Fontaine avança, sai do campo à direita para aí voltar logo a seguir num movimento contornante, reatravessá-lo e voltar a sair à direita atrás do ângulo da parede. O campo fica então vazio (e extremamente neutro) durante um tempo bastante longo que é o do presumível assassínio (não ouvimos nada), e depois Fontaine regressa de novo (4). (...)
(4) Esta descrição é completamente falsa: de facto Fontaine apenas sai do campo uma única vez. Apercebemo-nos disto quando revimos o filme pouco tempo antes de entregarmos o nosso manuscrito. No entanto decidimos deixar esta passagem assim como exemplo voluntário (restam ainda certamente no texto exemplos involuntários) do fenómeno a que podemos chamar “a falsa lembrança dos filmes”. É um fenómeno que tem profundas relações com a própria natureza da percepção cinematográfica e merecia estudos aprofundados. Queremos simplesmente evocar aqui por um lado o embaraço que pode criar ao analista, mas também a função extremamente positiva que pode ter para o criador. Pois de facto, o plano tal como o descrevemos existe realmente numa curta metragem que realizámos recentemente e em que, pensando “prestar homenagem” a Bresson, “retomámos” este plano tal como dele nos lembrávamos. »
Noel Burch, Praxis du cinéma, Estampa, Lisboa, 1973, pp. 36-7, n. 43-4
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