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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Uma ideia de programação #1: Augusto M. Seabra



A programação é a continuação da crítica por outros meios
Uma conversa com Augusto M. Seabra, crítico cultural

Pretendo iniciar aqui uma pequena série de conversas e textos dedicados à ideia de programação e às suas variadas concepções. Procuro interrogar o gesto particular do programador, que creio não se confunde com o dos comissários e curadores das artes plásticas, no momento em que este se torna evidente. Quer dizer, quando simultaneamente esse gesto é presente, sob a forma da passagem dos filmes em sala, e nele se nota uma originalidade.
Esta série poderia ter-se iniciado mais cedo e de várias maneiras, seja interrogando a intrigante actividade ocasional de programador do realizador Pedro Costa, seja com António Rodrigues da Cinemateca sobre o problemático ciclo «História permanente do cinema», ou ainda com o prolífero programador independente Ricardo Matos Cabo. Mas, também pela particular importância que o seu trabalho teve, enquanto crítico do jornal Público, no desenvolvimento da minha própria cinefilia, faz todo o sentido começar com Augusto M. Seabra. Os seus longos e intricados textos oriundos de paragens longínquas, que ocupavam várias páginas dos suplementos culturais do Público dos anos 90, eram uma delícia ansiada.
Lembro-me, por entre outras descobertas e suspeitas lançadas, da fruição antecipada na sua escrita de BLUE de Derek Jarman ou SÁTANTANGO de Bela Tárr.
Para além de crítico cultural, em particular de cinema e música erudita, no Público, jornal de que foi um dos fundadores, Augusto M. Seabra teve igualmente uma importante participação na excelente e defunta Revista do Expresso, onde escreveu sobre SHOAH de Claude Lanzmann, por exemplo. Foi também membro do júri de vários festivais internacionais, entre os quais Cannes, e anima o blogue «Letra de forma».
Esta entrevista é também uma homenagem, sincera, em terra de pobres e mal-agradecidos, no dia em que se inicia o seu ciclo «Autobiografias / Autoficções» na Culturgest, em Lisboa.

André Dias – Podemos talvez começar com um pequeno historial das suas programações de cinema. De que actos marcantes se recorda?







Augusto M. Seabra – Houve alguns programas realizados em colaboração com instituições estrangeiras. Sem prejuízo do meu trabalho em Roterdão ter sido, para mim, de razoável relevância, o mais importante foi a Mostra de Pesaro de 88, dedicada ao cinema português. Por cá, o primeiro momento marcante foi o segundo ano da Semana dos Novos Realizadores no Fantasporto, que me pediram para programar. Uma apresentação de novos realizadores, como nunca mais vou conseguir, que incluía Hal Hartley, Todd Haynes, Sharunas Bartas, Arnaud Desplechin, Wong Kar-Wai... E ainda, em projecções especiais, porque não se enquadravam em primeiras ou segundas obras, mas eram autores não conhecidos em Portugal, fiz muita questão em que apresentar Sokurov e Edward Yang. Isto em 1992. Não teve consequências, ou não teve seguimento, porque essa selecção apareceu como um corpo excêntrico no meio do festival. Enfim, também se viu, pela sequência dos autores, que aqueles nomes eram extravagantes demais, concerteza sem futuro...
Depois fiz algo que ultrapassou a estrita programação cinematográfica. Os dois festivais do Monumental incluíam cinema, embora estivessem longe de se limitar a isso. Por exemplo, em 1995 passei pela primeira vez Takeshi Kitano. Em 1996, também Makhmalbaf. Por essa altura programei igualmente o ciclo de Cinema Positivo, que era obviamente determinado por questões de mobilização cívica e cultural. Mas, para além dessas, achava que se estavam a pôr questões-limite de figuração cinematográfica. Esta programação que fiz agora para o DocLisboa, «Diários filmados e autoretratos», olha retrospectivamente para isso. Entretanto, há dois anos no DocLisboa, fiz uma programação [«Histórias da Europa: nacionalismos, identidades e fronteiras»], em parte porque, para além de ter a ver com campos de interesses e de especialização minha, me interessava o campo da sociologia e da sociologia política, mas também pela oportunidade de passar um filme que eu achava muito importante, THE ISTER [(2004) de David Barison e Daniel Ross].
Simultaneamente, houve um envolvimento maior no programa geral do DocLisboa do ano passado, em que apareci como programador associado. Apesar de tudo, para salvaguardar a minha autonomia crítica, não devo ser um dos directores. Ser director tem também inúmeros aspectos que não me interessam. Continuo a pensar que sou, basicamente, um crítico. E que a programação é uma continuação das opções críticas, digamos. Parafraseando, para mim, a programação é a continuação da crítica por outros meios. Concebi com o DocLisboa uma nova secção que se chama «Riscos e ensaios», dedicada a questões formais, onde há várias portas de passagem com os «Diários filmados e autoretratos», que é a que me toca mais. Ter naquela secção um filme do Marcel Hanoun ou do Jean-Claude Rousseau são coisas, para mim, muito importantes. E, recentemente, programei também, na Culturgest, o Hou Hsiao-Hsien.

Essa continuidade entre a profissão de crítico e de programador, não sendo um acaso meramente biográfico, revela então uma postura?


















Tive ocasião de conhecer e conviver com Serge Daney, o que foi muito gratificante. E, para além desse convívio pessoal, de fazer a leitura dos seus textos... Ele tinha aquela noção de “passeur” que é, para mim, muito importante. Na medida do possível, designadamente com objectos que são filmes, o nosso entusiasmo é algo que deve ser partilhado. Essa partilha começa por tentar disponibilizar que os filmes sejam mais vistos. Além dos actos de programação, uma das coisas que fiz ao longo dos anos foi ter uma relação próxima, em alguns momentos, com três distribuidores portugueses exteriores às majors. Dizia-lhes: “acho que deves distribuir este filme”. Ou, pelo menos, quando isso ainda era possível, “se distribuíres esse filme, garanto que tens cobertura e destaque”. Isso sucedeu inúmeras vezes.
Por outro lado, embora a situação do cinema não tenha nada a ver com a dos anos 70, há uma outra fórmula que também sempre me marcou. É do chefe de redacção dos Cahiers desses anos, Jean Narboni. A propósito de momentos como a Mostra de Pesaro e outros, dizia: «Il y a un film, je l’ai rencontré». Portanto, o que muitas vezes me aconteceu foi ser passador, neste sentido, de uma série de objectos que tinha visto em festivais e que achava importante serem sinalizados.
No meio disto vou-me lembrando de outras coisas. E, agora sim, fica completo o historial. Na altura em que havia ainda, com o António Pinto Ribeiro, aqueles festivais anuais [na Culturgest], programei o «Extremos do Mundo», o «Europa» e o «Comunidade». Era a possibilidade de passar filmes distantes. Distantes em todos os sentidos. Cinematografias da Ásia, por exemplo. E enfim, quando digo agora cinematografias da Ásia, no sentido que adquiriu comummente o cinema asiático, são as cinematografias da Ásia e do Pacífico, mas também as da Ásia Central, das Repúblicas ex-Soviéticas, ou de África. Portanto, do que é um algures cinematográfico, supondo que esse algures não é só uma questão de distância geográfica, mas também de sensibilidade cultural e modos de olhar.

Houve um fenómeno em que fui de alguma importância por cá. Tive a intuição ou a sensibilidade, mas porque tive a oportunidade, de me dar conta cedo da existência de florescimentos importantes em territórios como esses da Ásia e do Pacífico, em particular das três Chinas: Taiwan, Mainland (portanto, República Popular), e Hong Kong. O que me suscita ainda um grande interesse. Por exemplo, assistimos em poucos anos ao aparecimento e consolidação do cinema chinês da 5ª geração e, depois, ao aparecimento da 6ª geração. Lembro-me, a propósito dos primeiros filmes de Zhang Yuan, de um texto meu de 1995, provavelmente, em que colocava a questão: “Mas será que entretanto já está a aparecer uma 6ª geração?” Tive uma certa sensibilidade específica para isso, e fui tido internacionalmente como um dos críticos mais sensíveis. Quando digo isto é pondo noutro plano as pessoas que foram especialistas disso e que estiveram na origem do nosso conhecimento. E essa oportunidade de que falei é a eles que devo: Marco Müller ou Tony Rayns. Mas acabou por ser por me marcar, e até marcar a minha imagem, em circunstâncias em que eu fui júri. Isto não apenas em Cannes, embora esse seja o momento marcante. Porque o ano em que há a Palma de Ouro a ADEUS, MINHA CONCUBINA [BA WANG BIE JI (1993) de Chen Kaije] e o Prémio do Júri a O MESTRE DE MARIONETAS [XI MENG REN SHENG (1993) de Hou Hsiao Hsien] é o momento em que há, de facto, a consagração final dessa erupção. Depois disso também aconteceu com autores posteriores. A primeira vez que vi um filme de Tsai Ming Liang, no Festival de Berlim de 1994, tratava-se REBELS OF THE NEON GOD [QING SHAO NIAN NUO ZHA (1992)]. Não era sequer um filme que tivesse em competição, estava na secção Panorama. Pois, no dia seguinte havia uma página do Público sobre esse filme. Achava que tinha descoberto... Não gosto da expressão “descoberto”, porque parece que a coisa vem de nós, quando eles é que são importantes. Tinha encontrado um cineasta. Obviamente, a partir daí foi alguém que acompanhei, de quem sou próximo e amigo, etc. Portanto, programar é um gesto de partilha, de partilha das opções próprias. E, para mim, é, de facto, a continuação do acto crítico por outros modos.
O ano passado não foi nada feliz em termos de desaparecimentos. A posteriori há um facto que ainda me custa mais. A retrospectiva dedicada a Hou Hsiao Hsien na Culturgest era inicialmente para incluir Edward Yang. Trata-se de um caso extremo de autorismo. Mesmo os filmes que não foram produzidos por si, deles retomou os direitos. Tentei durante semanas, senão meses, mas nunca respondeu. Portanto, tive que fazer apenas Hou Hsiao Hsien, o que me deu muito prazer e permitiu uma visão mais completa da sua obra. Mas a ideia inicial era os dois autores importantes de Taiwan. Para se perceber que Hou Hsiao Hsien faz parte de uma base cultural tradicional, e é claramente um cineasta que vem do campo, enquanto que Edward Yang sempre foi uma pessoa de paisagens urbanas. E se penso que O MESTRE DE MARIONETAS e AS FLORES DE XANGAI [HAI SHANG HUA (1998)], mas sobretudo o primeiro, o que pode ser também por estar mais ligado a esse filme, são duas das obras mais marcantes da arte cinematográfica dos últimos vinte anos, penso igualmente que Edward Yang fez alguns filmes extraordinários. Dado ter havido uma colaboração entre os dois, praticamente se produzirem um ao outro, ou de Hou Hsiao Hsien aparecer como actor num filme do Yang e este ter colaborado directamente num filme daquele, era importante apresentá-los em conjunto. Não foi possível. Só passado algum tempo é que percebi o porquê de o Edward não ter respondido aos meus emails, no momento em que, infelizmente para mim, soube da sua morte.

Como descreve o contexto português de acesso aos filmes? A situação mudou um pouco com os novos festivais, que ganharam uma dimensão diferente nos últimos anos. Mas, por outro lado, parece haver uma retracção do público nas salas.
A preocupação em dar a ver objectos distantes é obviamente tanto maior quanto têm menos hipóteses de serem apresentados cá. Em primeiro lugar, distribuídos em sala. Mas, neste momento, não só. Ao contrário do que houve há alguns anos, não existir um segundo canal da RTP que tenha responsabilidades de programação complementares às cinematografias dominantes é uma coisa que me parece grave.
Para mim, o cinema é uma questão de sala. Só existe por outros meios supletivamente, de uma forma que já não é exactamente a percepção cinematográfica. E há uma grande retracção da sala. Infelizmente, suspeito que está para se agravar. Há factores intrinsecamente nacionais, mas é um fenómeno mais geral. Estamos a assistir a uma brutal mudança de paradigma. O que penso que está substancialmente a desaparecer é a ideia do cinema como espectáculo de massas. Que, no fundo, apesar de tudo, foi o cinema com que nós crescemos e aquilo a que nos habituámos a ver como cinema. A passagem por sala será cada vez menor na economia da produção cinematográfica. E agora haverá também essa nova imensa mutação, a passagem directa para difusão na internet.
Portanto, isto cria uma situação bastante paradoxal. A constituição de filmes também como objectos-arte, no sentido em que têm modos de organização e rituais mais próximos dos actos de exposição noutras artes. Ora bem, isto envolve factores que são extremamente perversos. Por exemplo, haver uma focalização do interesse geral nos festivais, mas depois não noutras formas de exibição, também elas paralelas, é notório por parte do público, e ainda mais notório por parte da imprensa. O ciclo «Diários filmados e autoretratos» do DocLisboa teve na imprensa níveis de interesse que de forma nenhuma teria se passasse isoladamente. Ou seja, nalguns aspectos era preferível que não passasse isoladamente. Tem a ver com questões de crítica. Quer dizer, sendo a crítica um acto por excelência de mediação, supõe colocar questões. E, evidentemente, ela hoje tende a desaparecer, tende a ser cada vez mais um acto de intermediação dentro de um processo de consumo. Isto anda tudo ligado.


Referiu os actos de exposição da arte contemporânea, das artes plásticas. Mas até que ponto não está a própria emancipação da programação e da figura do programador ligada a esse contexto mais geral do museu? Os programadores assinam como curadores ou comissários. Não estará o cinema a tornar-se um arquivo em que o programador joga com os filmes? Ou serão gestos diferentes?




É difícil. Há momentos em que digo que sim, outros em que digo que não. Em primeiro lugar, penso que a imagem projectada não é só o cinema. Portanto, não considero como cinema muitas das obras de imagem projectada que constam, que têm sido mais eminentemente apresentadas no campo das artes visuais ou das artes plásticas. Continuo a pensar que o cinema solicita a sala escura. Mas é um facto que nos habituámos a modos de relacionamentos com as imagens que são já posteriores a esse acto fundador. Acho muito difícil que a relação que se tem com um visionamento em Dvd ser da mesma ordem que uma exibição em sala.
Isto supõe também problemas estéticos e formais. A construção do cinema como arte do tempo nem sempre está longe de existir em outras obras de imagem em movimento. É certo que algumas coisas que começaram mais genericamente, ou mais integradas inicialmente no campo das artes, são importantes para o cinema. Ao trabalhar sobre este material de diários ou autoretratos, em obras reconhecíveis apenas como cinema, deixei de lado tudo o que há, e é muito importante, de vídeo. Mas reconheço que muitas vezes a inspiração veio daí, do conhecimento de experiências feitas no campo do vídeo por artistas plásticos, visuais.
Há alguns equívocos na passagem do cinema para o museu. Creio que está a ser demasiado facilitado. E, para mim, de forma clara, as duas grandes exposições de importantes criadores cinematográficos em museus, ou seja, o Godard em Beaubourg e o Lynch na Fondation Cartier, foram substanciais falhanços. O cinema define-se, para além dos seus modos de produção, também pelo lugar do espectador. Coisa curiosa que nos leva a algumas das primeiras teorizações do cinema, nomeadamente a Hugo Munsterberg. O lugar do espectador perante imagens em movimento não é o mesmo numa exposição ou numa sala de cinema. Mas há cruzamentos. E apesar desses equívocos, acho que teremos cada vez mais que lidar com o facto de que a consideração dos objectos cinematográficos como objectos artísticos far-se-á muitas vezes por formas que não aquelas tradicionais da exibição cinematográfica. Nesse aspecto, é a uma grande mudança de paradigma a que estamos a assistir, infelizmente em muitos aspectos. Sobretudo infelizmente, mas pronto.

Mas, para além desse contexto de apresentação das obras, não corre a própria figura do programador o risco de se transformar numa espécie de operador discursivo, um operador que joga conceitos e apresenta obras como exemplos? Parece-lhe legítima uma programação conceptual, ou baseada numa noção, que depois agregue obras a essa noção? Não acha que pode ser um gesto que coloca as obras a demasiada distância?

Tenho-me pronunciado sobre essa questão da consideração do comissário como artista. Que é algo que acontece imenso por cá... Quanto ao risco das programações conceptuais, não necessariamente... Estou perfeitamente convencido que cada vez mais isso irá ser feito. Um ciclo como o dos «Diários filmados e autoretratos» teve apenas a dificuldade da escolha. Por um lado, restringi-me na altura ao contexto ainda reconhecível como documental, excluindo as autobiografias e autoficções do campo ficcional, e não entrando explicitamente em relação com artistas do vídeo.
Vamos lá a ver. Os ciclos conceptuais também existem nas cinematecas. Às vezes até é pena que não existam mais. Porque se eu fizer um ciclo sobre o plano-sequência, sobre a voz-off, trata-se de uma questão formal, uma questão de cinema. No caso desses «Diários filmados e autoretratos», o que está fundamentalmente em causa é a reavaliação do lugar da subjectividade no cinema. Sobretudo no documentário, que é suposto ser o meio ou o género, ou uma forma de cinema motivada, tanto quanto possível, pela objectividade. É um elogio da subjectividade, do cinema singular, claramente da primeira pessoa do singular, e de experiências do tempo no quotidiano. E quando digo quotidiano é mesmo quotidiano do dia-a-dia e da relação temporal. E isto é uma questão de cinema.

Por oposição a ciclos organizados por questões não cinematográficas?

Sim.
Embora talvez seja um pouco difícil distinguir entre o que é cinematográfico e o que não é...

Posso dizer que o ciclo que fiz há dois anos no DocLisboa – «Histórias da Europa: nacionalismos, identidades e fronteiras» – era um ciclo temático. Um dos que me interessava porque tem a ver com um princípio que me move sempre, que é o de trabalhar e possibilitar a apresentação pública de uma diversidade de olhares. O «Diários filmados e autoretratos» [e o «Autobiografias/Autoficções»] não. Não só é formal, como diz respeito a algo de fulcral de cinema. A questão de saber até que ponto é, fundamental e explicitamente, a subjectividade que determina as formas de apresentação cinematográfica. E até que ponto categorias tidas como marginais, por uma ou outra razão, como o home movie ou o dito filme experimental, são desconsideradas. Pode pensar-se que são extremos. Mas como é que, hoje em dia, estão associadas dentro de formas de cinema que tenderão cada vez mais a existir? Portanto, pode haver circunstâncias de ciclo temáticos. Quer dizer, os ciclos que fiz anteriormente para Culturgest, todos eles, é certo, movidos pela importância que dou, por um lado, a ser passador, e, por outro lado, à diversidade de olhares, são, apesar de tudo, ciclos temáticos.
O que hoje acontece muito com o papel dos comissários nas artes visuais, o risco que se corre, é o das obras serem a demonstração de uma teoria pré-determinada. Não digo que nasça do nada, porque obviamente que vem de alguma observação que os comissários fizeram, mas é pré-determinada. E pode ser determinada por razões políticas e culturais até muito estimáveis, mas que correm o risco de fazer aparecer apenas com valor demonstrativo.
Por exemplo, tenho as maiores dúvidas (e isto é uma forma suave de pôr a questão) que o campo teórico genericamente considerado como o do pós-colonialismo seja hoje esteticamente operativo. Receio que, nalguns casos, se torne mesmo num paternalismo neo-colonial, por assim dizer. É exactamente o tipo de campo em que as obras surgem como demonstrações de um discurso pré-determinado.
Portanto, se o discurso for de ordem formal, ou se for um autor... Quer dizer, até acho que há ciclos que podem ser especulativos. E especulativo não é a mesma coisa que demonstrativo. Nem que seja para se chegar à conclusão que as coisas nada tem a ver umas com as outras. Dou um exemplo. No campo dos possíveis, gostaria de fazer um ciclo sobre filmes baseados em fotografias. Ou seja, em que estas sejam determinantes na sua matéria. A questão da imagem fixada e da imagem em movimento. Não sei se alguma conclusão global se extrairia daí, mas é uma coisa que me interessava investigar.
Outra questão. Gostaria que a organização e a apresentação de ciclos fosse, na medida do possível, também um processo de conhecimento, de transmissão de conhecimento. Cada vez mais acharia interessante que houvesse apresentações de ciclos que se ligassem a âmbitos do tipo seminário, colóquios ou assim. Seria muito relevante.


Uma das dificuldades, quando o cinema se associa a esse tipo de acontecimentos, é a de poder aparecer como ilustrativo, ou demonstrativo, como dizia. Outra dificuldade paralela é a de que certos filmes não chegam às pessoas que os precisam de ver. Talvez porque são “vendidos” apenas como cinema. Era quase preciso que escapassem a essa condição de cinema para poderem ser simplesmente vistos. Dou-lhe um exemplo. Um filme de Harun Farocki – DIE BEWERBUNG [A ENTREVISTA (1997)], que aborda a formação (do comportamento) dos desempregados para candidaturas de emprego, passou no âmbito de um museu, o CCB [e depois também no DocLisboa, num ciclo sobre o trabalho]. Temos a sensação que não é o público das artes plásticas que mais precisa daquele filme. Seriam antes os sindicatos, as pessoas que fazem recursos humanos, etc. Poderíamos talvez sonhar com um acesso mais directo aos filmes, que não se limitaria ao temático...

Percebo... O trabalho de divulgação tem uma enorme importância. Por vezes, na promoção, na divulgação, há que tentar sensibilizar filmes para sectores um bocadinho mais específicos. Aqui voltamos à questão do papel da imprensa, que hoje me dia me parece ser particularmente dramático. É muito complicado, sobretudo cá, conseguir fazer isso. É esse o lado perverso dos festivais, onde de facto as pessoas vão todas. Também não tenho a noção se são capazes de digerir, passe o termo, a quantidade de filmes que vêem num festival. Mas o que é certo é que vão, e depois não vão para as salas de cinema. Ainda assim, contrariamente a algumas reacções de distribuidores e até de autores, perante o facto de que um certo tipo de cinema ter cada vez menos espectadores nas salas, acho que não podem ser atribuídas culpas aos festivais. Infelizmente, é uma perversidade que está instituída. E já nem falo num aspecto que é importante, que tem a ver com os distribuidores ou exibidores que deixam degradar ou diluir a imagem específica de uma sala de cinema.
Mesmo que, por opções próprias, tenha deixado de seguir os festivais de há alguns anos a esta parte, de uma forma geral, depois apanho os filmes. Mas tenho uma verdadeira angústia em pensar na quantidade de filmes importantes, ou na quantidade de revisões, que não são possíveis de fazer partilhar. A programação da Cinemateca Portuguesa, porque é a única que existe, está longe de corresponder a isso, hoje cada vez mais. Mas também porque não existem outras formas. Custa-me muito que haja espaços que estão subaproveitados, ou que haja instituições que não apostem suficientemente num programa regular de programação cinematográfica.
O acto de programar é indissociável do gesto de partilha e, pelo menos em muitos dos casos, é indissociável do acto de colocar em público certas questões para saber também qual é o feedback. Isto corresponde também a uma forma de exposição pessoal, que é de risco, mas inerente ao gesto crítico. Não deve ser apenas um gesto de triagem com suposta autoridade, como se fosse um lugar neutro. Pelo contrário, é um gesto de diferenciação, de opções, de tomadas de partido. Quando hoje se tende fundamentalmente a construir consensos, o mais simples e raquítico de todos, que é o consenso das estrelinhas.


Consensos, mas também fomentos dos desejos, quase tráfico de relações públicas, artigos que parecem comunicados de imprensa das próprias distribuidoras... O que parte da própria ausência de exigência nos jornais, que não têm lugar para isso, ou julgam não ter lugar...

... que se demitiram disso.
O que gostaria era que houvessem condições para um trabalho de pensamento. Não sei se existem estruturas para isso, para além das instituições culturais estabelecidas. No caso, só a Culturgest em Lisboa. Apesar de tudo, continuo a pôr aos festivais, e aos dois que existem em Lisboa, que são o Indie e o Doc, a questão de saber se eles têm meios, disponibilidade e interesse para, além daquilo que é a sua razão de ser, fazerem programações mais regulares. Evidentemente, a resposta não depende só deles. Mas custa-me não haver espaços mais vocacionados especificamente para o cinema contemporâneo e para apresentação mais teórica e conceptual de questões de cinema, que é uma função que não é de todo preenchida pela Cinemateca. Sem embargo desta Cinemateca ser capaz de apresentar retrospectivas bastantes extensas e completas de uma série de autores importantes. Mas é um modelo de programação muito característico das cinematecas, em termos conceptuais muito pouco heterogéneo. Mesmo que hoje grande parte das cinematecas já o tenham alterado, sem dúvida por reacção ao exterior.


Uma articulação entre as cinematecas, enquanto museus históricos, ligados à própria respeitabilidade do cinema enquanto arte, e os museus de arte contemporânea que aparecem como mais flexíveis...

Sinceramente, acho que os espaços pluridisciplinares são muito interessantes. Permitem outro tipo de olhares diferentes sobre o cinema. Isto dito, era da tradição do Langlois apresentar autores completamente novos e desconhecidos. O Garrel teve das primeiras apresentações pela mão do Langlois. Mas não me gostaria de me centrar excessivamente, já foi uma discussão de muitos anos, no caso desta Cinemateca. Tem um modelo que cada vez mais me parece muito estafado. Mesmo aqui já houve mais imaginação para fazer ciclos do que há actualmente. Porque essa parte de imaginação também se exige ao programador.
Tem que haver condições para que a imaginação se repercuta.

Pelo minha parte, tenho sempre presente aquela frase do Narboni de que falei há pouco – «Il y a un film, je l’ai rencontré». Toda a vida fiz de forma a que isso fosse possível. Das coisas em que tenho mais orgulho, é na lista dos autores que fui a primeira pessoa a apresentar em Portugal: Todd Haynes, Hal Hartley, Desplechin,Wong Kar-Wai, Takeshi Kitano, Sharunas Bartas, Elia Suleiman, cuja primeira apresentação foi na Culturgest, e outros, Edward Yang, Sokurov. É uma parte muito importante do gesto crítico. Estão aqui estes que eu defendi, agora fica também à vossa apreciação... Não me dá gozo nenhum, confesso, saber que vi uns quantos filmes importantes, não são assim tão poucos, que, pelo menos aqui, praticamente mais ninguém viu. É uma coisa que não me dá gozo nenhum, antes pelo contrário.
Mas dentro deste trabalho todo, há também coisas que dão um gozo particular. E todas elas têm o seu risco particular. Mas não consigo pensar em programar sem pensar que é uma prática de riscos. «Riscos e ensaios» [secção do DocLisboa], o título aliás é meu. Acho que se põe uma ética da programação. A dimensão ética não está apenas presente nas obras em si mesmo, designadamente numa arte como o cinema, está presente num gesto de programação.


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