O espectador ocioso #8: Surround
Os historiadores do som no cinema, que não são na verdade assim tantos, acentuam bastante um aspecto pouco conhecido. Nos primórdios do espectáculo cinematográfico, para além das orquestras, enfim, talvez mais fanfarras, que musicavam o filme em directo, uma parafernália sonora à entrada dos cinemas chamava a atenção para a espectral novidade. Ou seja, tudo leva a crer que no cinema mudo era impossível ouvir o que quer que fosse, tal a barulheira. Hoje, os cinéfilos mais aprumados gostam de fazer alarde da sua exigência de silêncio. Só assim podem usufruir de cada gotinha de som vinda do filme na sua direcção. Separam-nas, aliás severamente, das outras gotinhas ou cargas de água sonoras, externas ou internas à sala, com as quais não estão em concordância. Tosses, cochichos, ressonares, telemóveis a tocar e outros sons que os corpos humanos, infelizmente, não conseguem privar-se de fazer, são intolerados. Excepção a esta rigorosa severidade parecem constituir os risos, que, pese embora alguns mais radicais os tentem censurar ou discretamente coartar, continuam a circular livremente pelas mais consideradas salas, já que chorar não faz barulho por aí além. É como se o cinéfilo quisesse progressivamente trazer a sua experiência solitária de espectador caseiro para o espaço comum da sala. Já não sei quando foi nem que filme estava a ver. O som estava a confundir-me. Não percebia donde vinham alguns dos seus acontecimentos. Esta incapacidade de os conseguir situar, de me conseguir decidir acerca da sua integração ou não na categoria de coisas que fazem parte do filme, que merecem consideração estética, estava a deixar-me, confesso, muito baralhado. Talvez fosse o espaço sonoro do filme, parte irremissível da sua contribuição criativa, que se estivesse a confundir com os ruídos vindos de fora daquela sala. Teria sido naquela bendita sessão do Fórum Lisboa, que foi marcada para decorrer ao mesmo tempo, e profundamente incomodar, o cocktail ali ao lado, organizado também pelo festival, com música e tudo, e cujo frenesim era sobremaneira perturbado pelo som do filme? | Foi durante este enervamento que tive uma bizarra ideia para um filme, ou melhor, para uma série de filmes, relacionada com o sistema de distribuição de som, agora comum nas salas, que é o Surround. O som destes filmes seria, a partir de agora, criado com o fim último de proceder à confusão e irritação dos espectadores na sala, tirando partido das maiores potencialidades expressivas desta espacialização do som. De que outra maneira empreender o combate às fontes sonoras, externas e também internas, que rompem o bloqueio ao sagrado silêncio da sala? Creio que apenas integrando-as na própria experiência da fruição do filme. Cobertos pelas argúcias de espacialização do som pelo Surround, a que experiências poderiam almejar os filmes? Por exemplo, que nos fizessem sentir um desastre natural a acontecer, não na tela, onde as personagens continuariam despreocupadas a tomar o seu chá palavroso, mas algures lá fora, no longuínquo fora da sala. Levantar-se-iam os espectadores com a expectativa de um terramoto? Talvez não, pois devem estar habituados às salas do Paulo Branco, onde o Metropolitano passa constantemente fazendo-se sentir. Mesmo assim, outras contrariedades poderiam ser imaginadas para tornar a experiência na sala mais realista, como altercações, cenas de pancadaria e outras discussões filosóficas no átrio vizinho. E tudo isto pelas virtudes do som colocado onde se quiser. Mesmo dentro da sala há muitos ocorrências por explorar. Por exemplo, a precisão da colocação de determinado som, um desses catalogados como incomodativos para a fruição cinematográfica, no lugar ocupado por um espectador na sala, poderia desencadear reacções vizinhas de pedidos de silêncio mais ou menos agressivos. O espectador mais atento e circunspecto pareceria afinal ressonar; outro, tão ciente dos seus fluxos, pareceria incontinente; e assim por diante. São sugestões simples estas que deixo, talvez úteis para que a experiência da sala não perca o seu esplendor, por comparação com o dvd visto em casa ou as instalações e performances nos museus, contextos onde é sabido que existe muito mais tolerância para si próprio e para os outros. |
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