Notas demasiado soltas (IndieLisboa 2008) #11: Denúncias, tiques
A figura da denúncia anunciou-se, logo no início do festival, aquando de PODUL DE FLORI (The Flower Bridge) de Thomas Ciulei, um «documentário-filmado-como-se-fosse-uma-ficção» (segundo Jorge Mourinha do Público). De facto, em certas cenas, o filme fazia mesmo questão em se denunciar quanto aos procedimentos de filmagem. Vemos o pai de família, que estava fora de casa, entrar de costas para a câmara; de repente, estamos à sua frente no corredor da casa, mas em plena continuidade temporal. Nada de especial, na verdade, mas trata-se de algo que, acentuado, cria um mal-estar, que não é específico ao procedimento, mas antes às condições concretas do filme em que aparece. O procedimento distrai-nos do filme. Assim, quando o pai se despede da filha, vemo-lo acenar de frente em grande plano; logo em seguida, estamos no morro adiante, bem longe, com a filha igualmente acenando-lhe adeus. Pior ainda, noutra cena em casa, essa mesma filha, que está de costas, pendura um desenho na parede e contempla-o, recuando um pouco. Pois imediatamente nos surge em grande plano, de frente, a levar a mão à cara, em gesto de contemplação pensativa. Estas denúncias merecem do espectador, pelo menos, o gesto semelhante, no escuro da sala, de levar a mão à cara, mas franzindo o sobrolho. Ao identificarmos estas denúncias não procuramos proteger uma especificidade documental, identificada com um certo tipo de procedimentos de filmagem, seja apenas a utilização de uma câmara ou o que seja. Não é, aliás, crível que essa especificidade seja completamente irredutível ou diga somente respeito apenas aos elementos técnicos. É antes como se esses métodos, que associamos à ficção e à encenação que lhe corresponde, criassem uma mais-valia de sentido que é desconfortável, que bloqueia a fruição do filme, que o torna problemático e manipulador, pois parece querer dizer-se a si próprio e não responde a nada que o filme peça. Trata-se provavelmente de uma insinuação perante o público habituado à ficção (e não por acaso, o filme está na Competição Internacional). | Noutro documentário aparece novamente esta figura da denúncia. Mas ela ganha aqui outra forma, provavelmente mais esclarecedora. Esta nova forma é devida ao objecto particular de DOCH (But still) de Oleg Tcherny e Erwin Michelberger, que são os doentes atingidos com o Síndrome de Tourette. No filme estes ensaiam uma reflexão sobre a sua doença e os efeitos que tem na sua vida quotidiana, enquanto se evidenciam profusamente perante a câmara os tiques repetitivos e os reflexos involuntários de que padecem. Os saltos súbitos da montagem parecem ser uma espécie de demonstração de solidariedade cinematográfica para com eles, constantemente interrompidos por aquelas repetições inconvenientes. É assim que, ao observarmos de costas uma mulher sentada no meio de um bosque, rodeada dos seus parceiros de doença num momento de confissão pungente e tocante sobre aquilo que a doença a impede de viver a nível familiar e afectivo, de repente saltamos para a sua frente, sem justificação alguma. Sem justificação alguma que não seja a própria justificação do tique cinematográfico, uma solidariedade involuntária do filme para com os seus objectos de atenção. Aquilo que, ao início, nos surgia ainda com a dignidade de uma denúncia, revela-se afinal apenas um tique descontrolado. |
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