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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

A fixação autobiográfica



Uma das grandes dificuldades da condição autobiográfica para a leitura das obras cinematográficas reside no seu carácter eminentemente extrínseco. É líquido que um espectador espantosamente ignorante dessa indicação autobiográfica, desse qualquer parentesco entre o autor e a obra por intermédio de uma vida suposta, encontre na sua visão isolada a evidência dessa autobiografia? E que sem ela o espanto perante a obra se perca? Como distinguirá o espectador essa vida privilegiada, sem informação conveniente, de todas as outras vidas que correm no ecrã? No ecrã têm todas a mesma dignidade. De que valerá uma obra, ou melhor, que força terá, se depender de um qualquer elemento extrínseco que a vem colmatar? Sabemos que as obras não são, a maior parte das vezes, acolhidas num campo neutro e despido de elementos conhecidos, de informações várias, mas isso não pode significar fazê-las depender desse contexto extrínseco.
É por isso que parece necessário encontrar as, porventura difíceis, evidências intrínsecas do autobiográfico num filme. Da belíssima trilogia de Bill Douglas, composta por MY CHILDHOOD, MY AIN FOLK e MY WAY HOME, recentemente programada por Augusto M. Seabra na Culturgest, poder-se-ia dizer que o próprio título tendencialmente denuncia essa condição autobiográfica. Sem dúvida, embora haja casos semelhantes onde tal não se passe assim. Creio que podemos encontrar nesta trilogia um outro elemento, este sim inequivocamente intrínseco à própria matéria cinematográfica. Aliás, trata-se de um elemento da condição autobiográfica que tem quase uma dimensão estrutural dessa mesma matéria cinematográfica.

Nestes três filmes, acompanhamos alguns momentos, por vezes isolados, da infância e, por fim, da adolescência tardia, de um rapaz escocês de vida extremamente carenciada e por demais confusa e exaltada em termos de relações familiares. As cenas aparecem bastante isoladas, não apenas por relação a um contexto dramatúrgico envolvente, mas também no que diz respeito às personagens, quase sempre sozinhas no plano. Pode especular-se, talvez, que isso se deve à natureza da rememoração dos acontecimentos da infância, que surgem desgarrados e sem uma continuidade vincada entre uns e outros. Como se se tratasse de uma convocação da dita memória fotográfica, daquelas imagens que nos ficam na cabeça, muitas vezes inexplicavelmente, pois não dizem respeito aparentemente a acontecimentos demasiado marcantes, e que somadas constituem a trama irregular, que pode ser reconstituída, do que foi uma infância, por exemplo.
Esta insistência, no interior destes filmes, na concentração em elementos espaçados, criteriosamente definidos pela imagem quase como arquétipos, poderiam ter lamentavelmente conduzido a uma esteticização fotográfica de carácter sentimental que se tornaria insuportável. No entanto, há destes filmes, de cuja força é tão grande que até o abismo perigoso que neles se abria, a sua tentação estéril, se expõe como vencido. E por isso, e progressivamente na trilogia, embora talvez concentrada no segundo filme, MY AIN FOLK, e no início do terceiro, MY WAY HOME, também porque começamos, com a acumulação, a entender com o corpo o gesto singular do realizador, se torna clara a sua grande audácia.


Dentro das cenas vemos que, pouco a pouco, certos elementos, certas personagens se fixam à vez, estancadas num tempo que não foi provavelmente recuperado pela memória. Essa fixação faz com que haja, dentro do plano, elementos fixos e outros que continuam móveis, ou seja, vivos. É uma diferenciação muito poderosa. No entanto, não parece obedecer a uma atribuição fácil, por exemplo, aos mais velhos, dessa fixidez. São todas as personagens que potencialmente divergem, seja quando isoladas, seja quando convocadas em conjunto com outras no mesmo plano, mas com quem não partilham afinal a mesma localização precisa na memória. Elementos dispares podem ser assim agregados, produzindo a tão desejada ficção narrativa, mas deixando os traços sensíveis da sua origem fragmentária.
Eis aquilo que parece constituir uma fixação especificamente autobiográfica. A beleza do gesto de Bill Douglas reside muito em nos dar essa fixação fotográfica da memória introduzida aos poucos na continuidade do filme, e ter-nos poupado a uma partilha, que seria inevitavelmente falseada, da memória duma infância, de uma vida, que não nos pertence a nós por igual.



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