Ao pé da letra #132 (António Guerreiro)
Não há nada mais errado e mais nefasto para o estado da democracia do que a convicção de que os políticos não se entendem, e mal o governo diz branco a oposição diz preto e vice-versa. Ora, este tipo de conflito é meramente formal e segue a regra dos papéis estereotipados que cada um desempenha. Não se trata de disputa política; pelo contrário, significa o desaparecimento da política e a sua substituição por conflitos que pertencem a outra esfera, onde se desenrola uma tragicomédia da aparência. O que se passa nestes conflitos exacerbados é o inverso do que parece à primeira vista: quanto à matéria política, quase não há desentendimento e poucas são as diferenças no modo de construir, representar e perceber os dados da situação, ainda que as medidas preconizadas à Direita e à Esquerda sejam diferentes. Na linguagem de um filósofo francês que esteve em Lisboa recentemente, Jacques Rancière, diríamos que, apesar do conflito, há a configuração de um campo de percepção comum. | E isto significa o seguinte: que estamos sempre imersos na mesma linguagem e nos mesmos gestos, condenados à repetição, sem palavras capazes de abrir o horizonte. Trata-se do discurso das táticas: táticas de gestão, táticas de sobrevivência, táticas de dissimulação, táticas argumentativas. Ora, quando tudo é cálculo pragmático e táticas, a racionalidade instaurada já não pertence à esfera da política (o mesmo Rancière diria que pertence à esfera da polícia*). E isto é tão insuportável que os cidadãos, antes de se incomodarem com o que os políticos fazem, incomodam-se com o que eles dizem: “Já não posso ouvi-los” é a manifestação primeira desse estado de exasperação. No polo oposto e simétrico, também fora da esfera política, está a experiência das multidões ‘impolíticas’, seduzidas pelas palavras do ditador carismático. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 26.3.2011. |
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