Ao pé da letra #131 (António Guerreiro)
Um Candide nosso contemporâneo que tivesse aterrado no Japão no dia 11 haveria de repetir o que disse Candide de Voltaire a 1 de Dezembro de 1755 quando chegou a Lisboa: “O dia do Juízo Final é aqui”. Já não há nenhuma teodiceia leibniziana que possa ser objeto da ironia voltairiana do “melhor dos mundos possíveis”, mas as imagens que temos visto da catástrofe no Japão mostram-nos porque é que o terramoto tem sido, na cultura ocidental, uma metáfora poderosa com um sentido teológico e teleológico (isto é, respeitante ao sentido da História). Por sua vez, Kleist escreveu em 1807 uma novela intitulada “O Terramoto no Chile”, que, retomando questões filosóficas colocadas no livro de Voltaire, pode ser lida como uma refutação da sua sátira iluminista. Mas as imagens que nos chegam do Japão fazem-nos ver porque é que o terramoto, além de ser uma “metáfora absoluta”, além de motivo de especulação filosófica e teológica, evoca narrativas como o Apocalipse e o mito de Prometeu. | A questão da técnica, como sabemos, é a grande questão moderna. Demonizada por uns e idolatrada por outros, nada melhor a define do que uma frase de Oswald Spengler, citada por Heidegger no comentário ao hino de Hölderlin ao Reno: “O homem não pode ver um rio sem o converter mentalmente em energia.” Entre o Reno que inspira o hino de Hölderlin e o Reno que alimenta barragens há uma oposição irredutível. Mas essa oposição entre um polo mítico-poético e um polo racional-matemático tem um alcance trans-histórico e não é exclusiva da cultura moderna. As imagens que nos chegaram do Japão, captadas com os dispositivos tecnológicos mais avançados, remetem-nos no entanto para dualidades, como a referida, que tendemos a julgar arcaicas. E trazem consigo um irrepresentável que nos subtrai à nossa temporalidade histórica. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 19.3.2011. |
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