Ao pé da letra #130 (António Guerreiro)
As reportagens que têm sido publicadas sobre os hábitos, os divertimentos e a cultura dos jovens deixam-nos um sabor a deceção: afinal, a bateria de inquéritos e verificações de uma sociologia empírica e espontânea não acrescenta nada. Estes exercícios de demonstração do óbvio, em vez de nos convencer de que aquilo que todos sabemos está certo, fazem-nos suspeitar de que esse saber só se pôde constituir a partir de ideias a priori que determinam o sentido único das conclusões. Um exemplo: quando os interrogatórios incidem sobre os “consumos culturais”, imediatamente se obtém o inventário dos produtos que as novas tecnologias fazem circular. Ora, o que devemos questionar é a própria ideia de “consumo cultural”, porque não se trata de uma descrição objetiva, como fica claro se lhe dermos um outro nome que já teve: indústria da consciência. Os “consumos culturais” são manifestações de superfície, mas é preciso ter o génio de um Simmel para penetrar através delas na essência de uma época. | A noção de “consumo cultural” está cheia de ideologia e diz muito mais sobre quem a utiliza do que sobre os “consumidores”. Para que tais reportagens avançassem alguma coisa no conhecimento, elas teriam de perceber não apenas o que os jovens “consomem”, mas como formam uma racionalidade das suas práticas culturais, isto é, que representações conscientes — que ideia — têm delas, que experiência intelectual, ou ausência dela, fazem (sim, porque alguém que lê Sade como filósofo não “consome” a mesma coisa que o leitor de Sade interessado em pornografia). Mas se a noção de “consumo cultural” se revela aqui falaciosa, a partir do momento em que passou a justificar a lógica do “ao serviço do consumidor”, adotada por editoras, instituições, suplementos e revistas culturais, tornou-se pura e simplesmente criminosa. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 12.3.2011. |
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