O que não escrevi (Doc’s Kingdom 2009, Serpa #0)
Tinha-me (auto)proposto como cronista da edição de 2008 do seminário Doc’s Kingdom, dedicada à paisagem como «trabalho do tempo». Falhei então redondamente, por várias razões: indisponibilidade de meios técnicos, extrema saturação do horário, cansaço, etc. Depois acabei por perder o meu caderno de notas, ficando sem base para recuperar as ideias para os textos. Mas lembro-me que teria sido interessante escrever: sobre como a apreensão de uma mesma paisagem é afectada pelo formato em que é filmada (e projectada), a partir da passagem sucessiva em POUR LE MISTRAL (1965) de Joris Ivens de um inicial preto e branco para a cores em 1:1.33 até à abertura para Cinemascope, ao ponto de se poder sustentar que já não se trata da mesma paisagem; como, a propósito de BANDITI A ORGOSOLO (1960) de Vittorio De Seta, se descobre que, mesmo por entre íngremes montanhas, a primeira paisagem é a do rosto humano; de como em SURFARARA (1955), do mesmo De Seta, existe um momento de suspensão, que interrompe o ritmo do trabalho com a vida póstuma; como, também nos filmes de De Seta, o problema do animal emerge poderosamente, na então evidente estrita dependência entre a vida dos animais e a dos camponeses e pescadores, tornando hoje claro como nos tornámos compassivos porque vivemos no luxo recente de um novo lazer, e levando-nos a perguntar sobre quem se atreveria a ter pena das ovelhas que morrem forçadas a atravessar os montes, ou dos atuns pescados no mar, quando são as próprias gentes também elas mortas de fome; sobre o abismo negro de LA VALLÉE CLOSE (1995) de Jean-Claude Rousseau; ou sobre algumas formas cinematográficas tendencialmente “achatadas”... | E ainda sobre um pequeno raccord fascinante em TROIS FOIS RIEN (2006) do mesmo Rousseau, passagem de plano estático sobre uma janela para um movimento de câmara na neve; ou como todo o vídeo é, desde logo, câmara de vigilância, “home video”, filme pornográfico; sobre a magia simples, material, de EUROPE 2005 – 27 OCTOBRE (2006) de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet; sobre a hipótese de um género de comédia experimental-estrutural, cujo primeiro expoente seria o fabuloso ONE WAY BOOGIE WOOGIE (1977) de James Benning; e sobre a necessidade de actualização também da banda de som no remake que é 27 YEARS LATER (2004) do mesmo realizador; sobre as difíceis relações som/imagem em CASTING A GLANCE (2007) de James Benning e RETRATO DE INVERNO DE UMA PAISAGEM ARDIDA (2008) de Inês Sapeta Dias; ou acerca da "solidariedade dos constrangimentos" ( seja lá o que isso for agora, que nem eu me lembro); ou sobre a inteligente frase, respondendo a uma objecção, de Inês Sapeta Dias – «Se [o meu filme] fosse a preto e branco não se via o preto e branco [da floresta ardida]»; e, para terminar, sobre como existe uma concatenação de elementos documentais e ficcionais em AQUELE QUERIDO MÊS DE AGOSTO (2008) de Miguel Gomes, mais do que uma verdadeira fusão, e de como ali a ficção ainda permanece relativamente estanque; mas, principalmente, sobre a expressão afectiva de Marante a cantar Som de Cristal no mesmo filme. |
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