Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Interromper o fluxo das imagens? (Doc’s Kingdom 2009, Serpa #4)

Um dos aspectos mais curiosos dos chamados filmes militantes, os que documentam as lutas políticas actuais, tem que ver com a sobrevivência neles de algumas formas estereotipadas da produção do cinema e do audiovisual. À sua ambição formal, tantas vezes mal dirigida e obliteradora do próprio gesto, não lembra questionar a utilidade dessas divisórias. Em particular a insistência no genérico e na assinatura, como formas de cunhar autoralmente os filmes e de os reclamar para o cinema com maiúscula, e mesmo a datação final que ocupa o lugar envergonhado do copyright (um caso assinalava o domínio de creative commons). Estas divisórias pretendem delimitar onde e como começa o filme e onde e como ele acaba. Postulam o modo de ver aquelas imagens tipificadas como “cinema”. Ora, se o que se procura fazer é dar ao acontecimento político as suas imagens justas e, portanto, principal ou secundariamente operar um curto-circuito nas imagens dominantes, “ideológicas”, dos média, não seria antes a passagem indiferente no fluxo das imagens aquilo que se desejaria? As imagens justas não teriam mais hipóteses assim de passar, numa indistinção formal, nos vários canais de disseminação do poder (televisões, Youtube, telemóveis, etc.) por entre e contra as actualidades, que deviam combater de forma imanente? E só se distinguiriam das imagens do poder pela sua força interna, quer dizer, pela sua capacidade diferenciadora não antecipável, e não por um estatuto exterior e abstracto, um regime excepcional de que se reclamam. Neste contexto, importa separar esta interrupção estatutária da que advém pelas próprias capacidades expressivas do cinema. Dizer que o potencial do cinema é cortar ou suspender o fluxo das imagens correntes contém, sem dúvida, uma beleza poética inestimável, mas é objectivamente contrário à sua eficácia política. É que a poesia não está dada à partida, como a política, de resto. Como viu Godard há muitos anos, a imagem justa tem antes que tornar-se imagem qualquer.

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