Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

O testemunho cantado (Doc’s Kingdom 2009, Serpa #3)




Mais do que por uma qualquer qualidade catártica associada ao proferir de um juízo universal, à visão de BAMAKO (2006) de Abderrahmane Sissako assalta-nos o inesgotável LES MAÎTRES FOUS (1955) de Jean Rouch porque neste aparece com clareza o particular desvio que os africanos fazem de algumas estruturas coloniais, sobretudo dos traços simbólicos de aclamação e pompa, que sujeitam implacavelmente ao transe. BAMAKO, por sua vez, é dedicado ao julgamento, bastante geral e abstracto, de duas instituições responsáveis pela imposição à força de procedimentos económicos e financeiros tipicamente ocidentais, também eles “ideológicos”, ou seja, da persistência do colonialismo. Mas é a própria estrutura do tribunal de Justiça, tal como aparece no filme, que nos surge paradoxalmente como a importação colonial por excelência, aquela que permanece passível de apropriação pelos africanos no processo que instauram. Como se as estruturas do Direito fosse em si mesmas politicamente neutras. É preciso notar que o tribunal do filme é pleno dos tiques e das togas, da função soberana do juiz, em que se reconhece bem mais o tribunal francês (sendo a França a antiga potência colonial local) do que o tribunal, com júri popular e baseado na jurisprudência, da potência americana que controla as instituições acusadas: o Banco Mundial e o FMI. De facto, cumpre perguntar se não será esta estrutura do direito utilizada pelo filme pelo menos tão perniciosamente colonial como as outras (económicas, financeiras, “ideológicas”, etc.) sujeitas ao severo juízo?

Apesar deste tribunal cinematográfico de BAMAKO decorrer num quintal ao ar livre, profano quanto baste (trata-se do quintal da infância do realizador), em local de passagem quotidiano, estamos ainda um pouco longe da perversão do próprio tribunal conseguida por Kiarostami em CLOSE UP (1990), este sim um tribunal existente, não imaginário, que é, no entanto, sujeito a profundos e fascinantes desvios, mesmo no juízo final, pela intromissão do cinema. Ainda assim, BAMAKO respira cinema, sobretudo nas cenas de natureza mais ficcional, e nas interacções destas com os procedimentos do tribunal, segundo o princípio de coabitação preconizado pelo realizador. Talvez por isso, por este tribunal tão formal ser trespassado constantemente pelas vidas concretas que decorrem ao lado, possam surgir dois testemunhos comparáveis, segundo o próprio Sissako, porventura mais importantes que os outros: o do homem que não chega a conseguir falar, portanto, que testemunha mudo; e o de um outro homem mais velho que testemunha cantando, numa língua africana que não é falada pelos presentes e que não surge legendada no filme. A incrível beleza desse canto, cujas queixas na sua especificidade verbal nos permanecem desconhecidas, é na sua singularidade de testemunho cantado o destronar mesmo da categoria de validade.

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