Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Doenças infantis

«De todos os crimes imputáveis à “Revolução Cultural” chinesa, o mais nefasto para o cinema foi a grave doença infantil chamada “maoismo” que acometeu os Cahiers du Cinéma a partir de 1970, no rescaldo de Maio de 68. Brincando não aos cowboys mas aos revolucionários de algum Comité de Salvação Pública, os membros da revista, que tinham aderido em massa à estranha seita maoista, fizeram expurgos na revista (disfarçando ódios pessoais em desavenças ideológicas, como sempre acontece nestes casos) e sentiram-se cada vez mais culpados em falar em cinema e manifestar prazer pelo que quer que fosse. A fase mais aguda da doença teve início em 1972, muito precisamente no número 241, de Setembro-Outubro daquele ano, marcando o princípio de um longo e tenebroso inverno. Os Cahiers deixaram de ter fotografias, inclusive na capa, e os textos ficaram entalados entre o estruturalismo, o maoismo e algumas pitadas de Lacan, tornando-se ininteligíveis. A revista morreu espiritual e quase literalmente. Em fins dos anos 70, quando parte da imprensa francesa não parava de anunciar os vindouros anos 80 como uma época muito diferente da que se vivia (o que viria a ser verdade, embora ninguém tivesse previsto o que vinha), os Cahiers começam a voltar ao normal. O primeiro número em que a revista volta a ser normal foi o 285, de Fevereiro de 1978. O editorial deste número começa com as seguintes palavras: “O nosso último editorial anunciava algumas modificações na apresentação dos Cahiers”, ou seja no conteúdo. A revista reatou rapidamente com o que tinha sido até 1970, inclusive do ponto de vista gráfico, o que transformou a quase totalidade dos anos 70 um parêntesis na sua história. (...)
Um dos principais responsáveis por esta indispensável mudança foi Serge Daney, que tinha não poucas culpas no cartório já que tinha aderido a fundo ao maoismo e fizera parte do comité de direcção da revista (colectivo, naturalmente) durante os anos negros. Mas Daney, além de muito inteligente, era verdadeiramente cinéfilo (entrevistou Howard Hawks aos vinte anos: Cahiers nº 160, primeiro número do período pós-amarelo). Para ele, como para muitos que se tinham enganado de revolução cultural (preferindo Chiang Ching à revolução cultural ocidental que acontecia debaixo das suas barbas e dos seus narizes, sem que eles a vissem), o final dos anos 70 foi marcado por um afastamento das baboseiras maoistas. Afinal, Mao morrera em 1976 e as tendências da Revolução Cultural foram imediatamente liquidadas: se na Chine Pop a révo cul (era assim que se dizia) já passara, por quê continuar a brincar aos guardas vermelhos em Paris? Neste movimento de normalização mental, Daney descobriu novos mundos, guiado em grande parte por pessoas que se moviam na constelação de Libération, que naqueles tempos era um jornal marginal (recusava a publicidade) e quase dadaísta (um exemplo: na primeira página do número 1000: “Leia o telegrama de felicitações que, nos enviou Valéry Gíscard d'Estaing, na página 25”, quando o jornal só tinha 24 páginas). Em Libération cruzavam-se e coabitavam o esquerdismo e o hedonismo do underground e foi assim que a montanha foi a Maomé e os Cahiers du Cinéma foram atraídos pela força de gravidade do mundo onde circulava Adolfo Arrieta.
»

António Rodrigues
[pena que não tenha escrito uma nova folha de Terra em transe...], Folha de «Flammes» (1978) de Adolfo Arrieta, Cinemateca Portuguesa
, 8.11.2006

3 comentários:

Anónimo disse...

Estavas na Cinemateca ontem? Também vi o filme...

André Dias disse...

estava, estava...
sabes, vejo sempre os filmes descalço. no fim do filme, quando acendem as luzes, demoro um pouco a calçar-me. a única pessoa que estava na minha fila da sala grande desesperava por passar. este homem tinha preferido não dar a volta pela coxia oposta, sentido que eu teria a obrigação de o deixar passar enquanto me calçava. preferi não o fazer. pacientemente, levantei as minhas coisas e avancei devagar por entre as cadeiras. a pressa fez as minhas chaves caírem do casaco, o que atrasou ainda mais a passagem do dito senhor. por pouco não nos pegávamos, pois ele perdeu a compostura e forçou a passagem. certamente não eras tu...
aqui fica mais esta imagem dessa doença chamada cinefilia, ou dos pobres afectos dos "ratos de cinemateca" (comigo incluído, claro). parece que o Luc Moullet tem um filme (que não vi) sobre esta gentinha - Les sièges de l'Alcazar (1989).

Anónimo disse...

Não era eu, não - mas é engraçado porque também me acontece de tirar os sapatos no cinema! Fica bem.


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