Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Materialismo (Maria Filomena Molder)

Nesse ensaio sobre Edward Fuchs ele parece tentar uma visão, no fundo, da investigação histórica das obras, como ele chama, materialismo histórico e remete para Marx... Mas o que é que isso significa exactamente?

Significa que a compreensão de nós próprios e de qualquer época, da época em que vivemos e de nós próprios nessa época, está ligada às coisas que existem na nossa época, aos objectos que existem na nossa época, que nós usamos, ao modo como lidamos com o dinheiro, o que é que fazemos com ele, às faltas que há deste ou daquele alimento, ou da abundância, está ligado com as condições concretas da nossa existência, sob todas as formas. E Benjamin considera que mergulhar no estudo dessas constelações materiais da nossa vida traz muitos ganhos para a compreensão da imagem da nossa vida. E votar à escuridão, votar à ignorância, votar ao desprezo, esses elementos da nossa vida implica votar-nos a nós ao desprezo.
Só um exemplo: a alimentação. O modo como nos alimentamos tem a ver com o modo como nós vemos a relação entre nós e os animais, a relação entre a vida e a morte, e por aí adiante, bem como os cuidados que temos com a alimentação. Nas culturas todas, e nas culturas religiosas todas, o problema da alimentação é um problema central. Se nós consideramos que o problema da alimentação é um aspecto técnico da nossa vida que tem que ser resolvido de modo técnico, estamos a apresentar a nossa vida de certo modo, fora da nossa relação com o respeito pelo alimento, com o respeito pela vida dos animais, etc. Portanto, para nós compreendermos, neste momento, a nossa existência, não podemos afastar daquilo que diz respeito à nossa alimentação os aspectos técnicos em que ela está completamente soterrada, e tomar conta deles, analisá-los, mostrando as consequências que têm, não só para o sistema da alimentação, mas para a compreensão da nossa própria vida.





Benjamin não estabeleceu, como os teóricos marxistas, uma relação entre infraestrutura económica e superestrutura espiritual, ou cultural. Ele considera que a vida humana é um todo, que tem a ver com a alimentação, que tem a ver com a deslocação, tem a ver com ruas arruinadas, tem a ver com guerra… Eu estava a tentar ver aqui numa carta que ele escreveu a Max Rychner, de 7 de Março de 31, em que ele responde a este amigo que lhe pergunta como é que ele agora tem esta visão materialista, esta aproximação materialista. Diz assim: «A maneira mais fiel de me considerar, seria ver-me não como um partidário do materialismo dialéctico como de um dogma, mas como um investigador para quem em tudo aquilo que nos anima, a atitude materialista parece mais fecunda que a idealista do ponto de vista da ciência e do homem. Para dizer isto numa só palavra, eu nunca pude procurar e pensar senão num sentido, se ouso dizê-lo, teológico, quer dizer, conformemente à doutrina talmúdica dos quarenta e nove degraus da significação de cada passagem da Tora» — este número quarenta e nove como um número que diz respeito a uma infinidade de interpretações — «Ora, estas hierarquias do sentido talvez a chateza comunista, mais cansativa, talvez as respeite mais do que a actual profundidade burguesa.» — aqui está claramente oposto uma visão à outra, que em meu entender apenas só tem uma atitude, que é apologética, é defender a ordem do dia. A questão do materialismo tem a ver com a questão da interpretação, em Benjamin, e todos os elementos da vida do ser humano, e em particular aqueles que parecem mais humildes e modestos, menos decisivos para a espiritualidade, são absolutamente decisivos.





Pensemos na palavra “morte”. A palavra “morte” é decisiva, mas há quem não possa enterrar os seus mortos. A Antígona é exemplo disso, em relação ao irmão, por facto desse irmão ter combatido na sua própria terra, na sua própria cidade. Mas há quem não possa enterrar os seus mortos, porque, por exemplo, não tem dinheiro para pagar o enterro, convém não desconhecer isto. Isso pode ter expressão num poema, convém não ignorar isso. Por exemplo, em relação ao vinho, em relação ao Baudelaire e aos poemas sobre o vinho, de que já vos falei, o vinho e a embriaguez eram modos de resolver a falta de alimentação, a falta de sono, por aí adiante. E a partir da altura em que houve um imposto sobre o vinho, a vida dos operários parisienses mudou, e Baudelaire mostra isso no seu poema, se nós ignoramos isso, não podemos compreender o poema. Nós sabemos o que é o pão, mas se não temos pão para comer, sabemos uma coisa que a pessoa que tem pão para comer não sabe, mas isso pode ser dado na palavra “pão”, ter para comer ou não ter. São esses aspectos, que nós podemos considerar materialistas, que aparecem cada vez mais esmiuçados na obra de Benjamin. Ele cada vez tem mais respeito por esses aspectos da vida, que ele considera que tem a ver com uma visão teológica, dos quarenta e nove sentidos.
Os comunistas nunca se enganaram em relação a Benjamin: o Brecht achava Benjamin uma aberração, um tonto. Benjamin quer ser materialista dialéctico e histórico, mas nenhum materialista dialéctico e histórico o reconhece, porque falta-lhe a tal mediação dialéctica. Ele vê no vinho o mistério, não faz nenhuma mediação, não é preciso fazer mediação. Ele realmente não traduz a sua compreensão desses aspectos materiais da vida em perspectiva dialéctica. Por exemplo, o trapeiro, o que recolhe os dejectos (papéis, roupas, etc.) da cidade – que ele considera que representa uma das experiências da compreensão da ruína – é uma figura que mostra aquilo em que a sociedade se está a constituir, que é em dejectos, em ruínas, em restos. Isso é um elemento material inegável, mas a figura do trapeiro ela própria já é uma espécie de compreensão, mesmo que ele não saiba. Digamos, é uma figura alegórica realizada, sendo que é uma profissão, com a qual se quer ganhar, porque é uma sociedade ainda em que os restos podem ser recolhidos, na nossa já não podem ser recolhidos, os restos são todos para deitar fora – bem, há as reciclagens, que é um esforço de fazer frente a uma sociedade que desistiu de recolher o lixo, no sentido de o integrar na vida, é a sociedade que deita fora sem parar, sem qualquer solução. E o trapeiro é uma solução, recolhe e ganha – ganha pouco, mas ganha – e é uma espécie de redentor, materialmente falando, das ruínas.





Ainda há trinta anos havia pessoas que iam a nossa casa buscar garrafas, buscar jornais, essas pessoas acabaram, não têm o menor sentido de existirem já. Em vez de haver essas figuras alegóricas, é um sistema industrial que transformou e que tem consequências na nossa vida, também no nosso modo de ver o lixo, que é completamente distinto da minha infância. O lixo orgânico, como nós chamamos agora, os restos das batatas, os restos disto e daquilo, eram para os animais, era assim que se fazia. Não tinha que haver nenhuma recolha especial industrializada. Mas agora é impossível porque os animais deixaram de estar à nossa beira, portanto, a vida dos animais também está industrializada e a agricultura também está industrializada, portanto tudo mudou.
São esses aspectos a que ele quer dar relevo, como James Joyce também deu relevo na sua obra, e ele não quer passar por cima disso, porque sabe que isso é o centro da vida humana. O centro da vida humana tem a ver com o modo como o homem vê as suas necessidades enquanto vivo, as palavras estão aí: a palavra “pão“, a palavra “água“, a palavra “morte“, por aí adiante. E depois claro que isso tem aspectos fisiológicos, que se preenchem desta ou daquela maneira, e nada disso pode ser ignorado por aquele que quer compreender o que quer que seja. É nesse sentido que ele fala de materialismo histórico e ele leu Marx, evidentemente, mas a verdade é que os desenvolvimentos que ele faz parecem muito pouco regulares dentro de uma teoria marxista. Ele quer que os aspectos materiais e concretos, na sua materialidade da vida, não sejam postos entre parêntesis por não serem dignos, por serem indignos. Ele tem essa ideia, muito antiga em certos pensamentos, em particular no pensamento espiritual judaico, que no elemento mais modesto, por exemplo, no comer o pão, está guardado o sentido que envolve a nossa vida toda, o não estragar o pão, por exemplo, não deitar o pão fora – era impossível na minha infância deitar pão fora, absolutamente impossível, nenhuma criança podia deitar pão fora, não era permitido, e era muito difícil deixar estragar comida, era visto como uma ofensa à família, uma ofensa à própria criança, uma ofensa à comunidade. Essa ideia alterou-se, essa experiência alterou-se, isso significa que a alimentação perdeu dignidade, claramente. Come-se o que houver, come-se como houver e deita-se fora. Produz-se mais do que aquilo que se precisa, por exemplo, e já se sabe que o resto se deita fora, já vem a embalagem para deitar fora. A alimentação perdeu em muito o seu valor educativo, o seu valor formativo, em relação ao sentido da nossa vida.





São esses aspectos e muitos outros sobre os quais Benjamin chama a atenção ao ler poesia, e não ao ler filosofia. Ele em Marx encontra, supostamente, uma fundamentação disso, mas aquilo que se encontra em Marx é outra coisa, não é isto, ainda que tenha alguma ligação com isto, mas não é isto, é outra coisa. E é essa instrução que ele quer encontrar, essa instrução que os aspectos materiais da nossa vida, de acordo com a maneira como nós os vemos e os utilizamos e os transformamos, têm a dar sobre a nossa vida. Isso encontra-se na grande poesia, na grande literatura, e é isso que ele quer encontrar. O historiador, para ele, é uma espécie de trapeiro, é um coleccionador.


Maria Filomena Molder,
excerto transcrito do seminário «Problemas de Crítica e Tradução»
dedicado a Walter Benjamin, 25.1.2007

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