Ao pé da letra #182 (António Guerreiro): Quem sentir falta que leia
A intervenção mais inteligente e intempestiva, vinda da área cultural, nos últimos tempos, foi a de Hélia Correia, no programa Câmara Clara, ao responder assim a quem lhe perguntou que medidas deviam ser tomadas para tornar mais conhecida a obra de Maria Gabriela Llansol. “Nenhumas. Quem sentir falta que leia”. Interromper o proselitismo e o nauseabundo ambiente de campanha instalados desde há muito em várias áreas culturais, nomeadamente nos livros, é uma tarefa urgente, se queremos sobreviver a estas formas de condicionamento dos espíritos – suprema manifestação do niilismo contemporâneo. É preciso destituir esta ‘fala’ sobre os livros endereçada a quem presumidamente pouco ou nada sabe. Porque o contrário é que é necessário supor: que todo o discurso tem como interlocutor alguém que sabe muito mais. E isto tanto vale para as manifestações onde se difundem títulos de livros e nomes de autores, como para a crítica, cujas regras, protocolos e modos discursivos foram completamente subvertidos e adulterados pelo estúpido imperativo de aconselhar, de dizer implícita ou explicitamente que é “obrigatório”, de presumir a incapacidade e a falta de saber de quem está do outro lado. | A crítica de um livro que não suponha a inteligência e a soberania intelectual do leitor entra imediatamente numa outra categoria: a do marketing, a da difusão, a da propaganda. Não há nada a difundir, nada a aconselhar, nada que seja obrigatório. Presumir o contrário é entrar fatalmente no discurso da estupidez que se manifesta em injunções deste tipo: “Este livro faz-lhe falta, aceite o meu conselho.” Conseguir, no entanto, que alguém sinta, por si, em total soberania, uma falta que não sentira antes, isso sim, é a única tarefa capaz de nos salvar da horda triunfante de defensores dos livros e da literatura, dos quais, todavia, ela precisa de ser salva. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 10.3.2012. |
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