Ao pé da letra #185 (António Guerreiro): Revolta e revolução
As cargas policiais contra manifestantes, tal como elas se deram, mostram que há um medo latente da revolta, numa altura em que a revolução desapareceu completamente do horizonte. Num livro sobre a revolta spartakista, em que foi assassinada Rosa Luxemburgo, o grande mitólogo Furio Jesi distingue a revolta e a revolução segundo um critério que tem a ver com duas diferentes experiências do tempo: a revolta é a suspensão do tempo histórico e tem um valor em si mesma, independentemente das suas consequências e das suas relações com a historicidade; pelo contrário, a revolução implica um cálculo estratégico de longa duração, visa transformações no tempo histórico. Quando deixa de haver lugar para a revolução, mas apenas há para a revolta, é porque a única experiência do tempo é a do quotidiano e não a da história, é a do vivido e anão a do que há de vir. A revolta não precisa de se projetar em nenhum horizonte. | As coisas podem ganhar uma feição dum pouco diferente se pensarmos no “comité invisible”, que surgiu há alguns anos em França e, sob anonimato, publicou um livro que teve uma enorme repercussão, L'insurrection qui vient. Podemos perceber que este “comité invisível” entende por insurreição algo que não é diferente da revolta. Mas, ao contrário de toda a mitologia esquerdista vinda do maio de 68, propõe a tática da invisibilidade, da sabotagem, do anonimato, recusando dar a ver a sua causa (isto é, “mediatizá-la”), furtando-se assim aos ataques e abdicando de toda a retórica do heroísmo. Tornar visível é, segundo o “comité invisível”, a grande armadilha em que cai toda a ação política — não apenas a da revolta – do nosso tempo. Daí que, em vez da linguagem primária própria da estratégia da visibilidade, usem uma linguagem complexa e elaborada, de feição literária. No fundo, ao defender uma “insurreição que vem”, o “comité invisível” reformula a ideia da revolta. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 31.3.2012. |
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