Ao pé da letra #184 (António Guerreiro): Democracia e demofobia
Este texto foi escrito na véspera de uma greve geral. No entanto, não é um exercício de futurologia, mas de ciência exata, dizer que amanhã o número dos grevistas apresentado pelo Governo não é de perto nem de longe comparável ao que reivindicarão os sindicatos. Este é um ritual imutável. O efeito da greve consiste num número virtual, e por isso ele é minimizado de um lado e maximizado de outro. Mas a manipulação dos números, por ambas as partes, mostra com toda a evidência que a democracia é uma formalidade que até consente a demofobia. Para os governos democráticos, o povo é soberano no voto, mas nunca é soberano – está sempre a ser submetido à manipulação – quando decide protestar ou pôr em causa a infalibilidade governamental. Por mais que seja reconhecido formalmente o direito à manifestação e à greve, a atitude dos governos (e, simetricamente, também dos sindicatos) consiste em diminuir a legitimidade desses atos e, de um modo geral, em não reconhecer aos cidadãos o sapere aude, o ousar pensar, que Kant dizia ser a saída do estado de menoridade que a razão iluminista consagrava. | A demofobia, bem visível em todas as circunstâncias da prática democrática da governação e não apenas no momento das greves, mostra que aquilo a que chamamos democracia releva de uma profunda ambiguidade, que um lúcido filósofo italiano definiu nestes termos: ela é, por um lado, uma racionalidade político-jurídica e, por outro, uma racionalidade económico-governamental. O problema é que estas duas racionalidades se tornaram completamente heterogéneas, opostas, de tal modo que aquilo que política e juridicamente é legítimo e constitui a democracia acaba por ser negado no plano económico-governamental. Num momento como o que vivemos, em que esta última é a regra e o critério de tudo, a democracia, como já todos percebemos, não passa de tagarelice. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 24.3.2012. |
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