Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

O destinatário que testemunha. Uma conversa com o crítico Adrian Martin



Primeiro verdadeiro post do ano, uma longa entrevista com o importante crítico de cinema Adrian Martin. Nascido em 1959 e sediado em Melbourne, Austrália, Adrian Martin exerceu, durante vários anos e até 2006, a função de crítico no jornal The Age. Autor de inúmeros livros sobre cinema, desde Phantasms (1994) a Raúl Ruiz: Sublimes obsesiones (2004), vem de publicar uma antologia no Chile, ¿Qué es el cine moderno? (2008), tendo sido igualmente co-editor, com Jonathan Rosenbaum, do marcante Movie Mutations: The Changing Face of World Cinephilia (2003). É também professor na Monash University, em Melbourne, e co-editor da melhor revista online de cinema, a Rouge
A sua produção crítica e teórica caracteriza-se antes de mais pela extrema profusão e pela abrangência não dogmática de autores e estilos bastante diferentes. Mas também, e sobretudo, por uma reflexão aturada sobre a própria natureza da função crítica e, em particular, sobre as suas dinâmicas e transformações face aos novos meios. Encontram-se facilmente online vários dos seus textos críticos, bem como outras entrevistas ou o discurso de apresentação da sua recente antologia.




Esta entrevista foi realizada em Setembro de 2008 em Reading, Inglaterra. Dado que partilhamos uma preocupação com a diversidade também linguística da cinefilia, foi acordado que seria publicada exclusivamente em português, para especial proveito dos cinéfilos brasileiros, portugueses e demais. Mais recentemente, Adrian Martin premiou, enquanto membro do júri internacional do Festival de Valdivia, no Chile, o filme AQUELE QUERIDO MÊS DE AGOSTO de Miguel Gomes, escolhendo-o também como absolutamente o melhor filme de 2008: “a revelação do ano – uma divertida, comovente e idiossincrática mistura de documentário, ficção e música popular.” 

Um agradecimento a Flavia de la Fuente pela fotografia principal e a Andy Rector, der Amerikanische Freund, pela sua inestimável ajuda na transcrição.
  
Heranças do cinema contemporâneo
André Dias – O que lhe parece verdadeiramente interessante no cinema de hoje?




  

Adrian Martin – A escola abrangente do minimalismo é ainda muito boa. Filmes como NIGHT AND DAY de Hong Sang-soo... Ou aquele incrível filme japonês de quase três horas: THE REBIRTH de Masahiro Kobayashi. O realizador já não é novo, mas faz longas metragens de ficção bastante experimentais. Esta restringe-se à situação quotidiana de um homem, representado pelo próprio realizador, e de uma mulher que estão ligados por um acidente sofrido pelo filho de um deles. Circulam em redor um do outro, conscientes de como a sua relação se estabeleceu, mas não se falam nem se encontram directamente. Todos os dias têm que trabalhar perto um do outro, comer na mesma sala... O filme desenvolve-se através das repetições metódicas de todos estes gestos da sua vida quotidiana e do modo como as personagens se evitam. Às vezes quase que se falam, mas acabam por não o fazer. Mesmo no fim, na rua perto de onde tudo decorre, encontram-se para conversar. Nos dois últimos planos, ele e ela olham directamente para a câmara à vez. É um final muito forte para o filme, que está um pouco na vizinhança do estilo de Chantal Akerman, construindo a intensidade através da repetição e introduzindo depois pequenas e poderosas variações. Vemos o que o homem põe a cada dia no prato, a maneira como parte o ovo sobre a massa, etc. Quando faz algo de diferente torna-se altamente dramático, produzindo uma torção no padrão do filme. Portanto, sinto que se está a dar um retorno ao minimalismo, que é um estilo em que se pode ainda fazer coisas.

Reage muito fortemente contra as tendências que vêem no cinema moderno a transgressão das regras clássicas...

A impressão que tenho é que as regras foram frequentemente, embora nem sempre, bastante flexíveis. Daí o meu interesse em tentar estabelecer uma ligação entre formas extremas do cinema popular, ou sub-popular, e obras mais experimentais. É nesses géneros populares, como o terror, o gore, etc. que as regras se revelam extremamente flexíveis. Por vezes, parece que nem sequer existem regras. É um espaço muito interessante de invenção livre sobre as convenções. Assim, o quebrar das regras não parece um modo adequado de explicar o que se passa nestes filmes e torna-se cansativo. Na verdade, é uma espécie de postura dizer que a importância do “modernismo” cinematográfico está no quebrar e transgressão das regras clássicas. Porque, no fim, podemos perguntar-nos: quebraram a regra, e depois? o que vão fazer agora com isso? Transgrediram a regra, mas... A questão difícil acerca da liberdade é sempre a de saber o que se vai fazer com ela. O mesmo acontece nos filmes.
 

Pensa que existe uma descontinuidade entre cinema moderno e contemporâneo? Ou que realizadores como Abbas Kiarostami, Pedro Costa e outros relacionam-se de alguma forma com o cinema moderno?



 
Os editores chilenos do livro novo que acabo de publicar quiseram chamar-lhe O que é o cinema moderno?, como se numa continuação de Bazin. O que é um pouco assustador. Depois, claro, tive que escrever uma introdução tentando definir o que é o cinema moderno. Foi um exercício muito desafiante. Advogo a visão comummente aceite que o cinema moderno, o modernismo ou a modernidade em termos cinematográficos, acontece no final da Segunda Guerra Mundial. Muitos, quase todos, dizem o mesmo: Rancière, Godard, Deleuze, etc. Tudo começa com Rossellini e outras figuras desse tempo, também na América e noutros sítios. E ao longo dos anos 60 houve também um grande período de modernismo.
O passo que já não dou é o do pós-modernismo, porque é um termo vazio, que não assinala nada de significativo. Compreender ou explicar Costa, Zhang Ke ou Kiarostami através do pós-modernismo não quer dizer rigorosamente nada. Porque trata-se sobretudo da questão de um cinema ético, de um cinema do gesto. De gestos extremos de pobreza, de pobreza de meios no cinema ou de um minimalismo extremo, embora nem sempre seja baseado nessa escassez. É, na verdade, uma espécie de essência purificada do modernismo. Que estabelece uma relação cada vez maior com o documentário. As coisas mais novas no cinema são estas em torno do desvanecimento da linha de separação entre documentário e ficção. Mesmo se já se fala nisso há vinte anos. Mas agora, em particular com o importante papel da tecnologia digital, o deslizar para fora e para dentro do documentário e da ficção, e a confusão devida a por vezes não se saber o que se está a ver, constitui, na minha opinião, um modo verdadeiramente novo.
 
Uma zona de fronteira entre ficção e documentário que está a ficar cada vez larga...


 
 
Lembro-me de um interessante filme argentino – THE FAITH OF THE VOLCANO, em que se colocava claramente esta questão. Era filmado em digital, com jovens personagens a vaguear, como se num filme de Zhang Ke, pegando nas suas bicicletas e passeando ao longo da praia. E comporta estes momentos em que a ficção desliza quase completamente para fora e o documentário se impõe. Depois, muito subtilmente, a ficção começa a voltar, apenas por alguém entrar no quadro e perguntar se querem comprar droga, por exemplo. De repente, eis a ficção ali de novo. Esta fluidez absoluta é uma área muito interessante. Sobretudo o modo como se lida com ela, em vez do seu uso simples, recoloca a questão dos gestos éticos no cinema. No centro do cinema contemporâneo que admiramos está o gesto ético.

Contra Bordwell
A partir do seu importante ensaio «Mise-en-scène is dead, or the expressive, the excessive, the technical and the stylish», a introdução à sua tese Towards a synthetic analysis of film style faz a explanação teórica da sua perspectiva como crítico de cinema. Pode tentar resumir a sua ideia de uma “análise sintética”?


Trata-se sobretudo de um problema de economia, de tentar aferir a economia de um filme em particular, ou de um tipo de filmes. O que está intimamente ligado à questão da relação entre forma e conteúdo... ou entre estilo e tema, ou entre forma e matéria, como diria Straub. Parecem-me existir diferentes economias dessa relação, dependendo de onde nos situamos na história do cinema, ou que realizador ou género se considera. A economia do estilo por relação ao tema é diferente num musical e num filme de Rossellini, por exemplo. Este é o problema que me ponho.
Mas porquê “sintética”? Escrevi uma vez um texto sobre isto, sobre os dois primeiros livros que me influenciaram. O primeiro foi Theory of film practice (1969) de Noël Burch, um livro impressionante de formalismo, de um olhar concentrado somente nos parâmetros formais. David Bordwell, que reconhecidamente deve imenso a Burch, dele retirou o conceito de “narração paramétrica”, mas empobrecendo-o. Porque Burch utilizava-o de uma forma muito mais livre, interessante e dinâmica. Por exemplo, escreveu um ensaio sobre NANA (1926) de Jean Renoir incitando-nos a olhar somente para o que se passa nos quatro lados do ecrã. Tomando em considerando todo o tipo de espaço fora de campo, todas as direcções, à frente da câmara, atrás dela, etc., ele faz esta estonteante enumeração das dinâmicas de todos os espaços nesse filme. Claro que, no fim, a Burch não interessa nada o que o filme trata, quem são as personagens, o que história conta, qual é a sua moral, etc.. Trata-se de uma fase extrema do seu trabalho, mas muito importante. Burch incitava-nos a atender à construção serial. Um filme permitir esse jogo de variações dos seis espaços era suficiente para que ele o considerasse um grande filme.


E Bordwell terá sistematizado isso numa grelha...




Bordwell sistematizou-o de uma maneira vazia. Chegamos ao ponto, e estou a caricaturar, em que se Steven Soderbergh decide colocar vermelho em cada cena de um filme só porque gosta de vermelho, para Borwell isso já é narração paramétrica. Dado que, mesmo não tendo nada a ver com as personagens ou a história, pode sempre dizer-se que há vinte tons de vermelho no filme e que vão do mais intenso ao mais fraco, etc. Isto não é tão interessante, dinâmico ou inventivo como o que Burch fazia. Se virmos com atenção, é uma forma banal de análise.
Mas estava a falar de quando tinha 16 anos e li Burch. Foi um grande choque. É um livro incrível para um jovem interessado em cinema ler. Depois li Film as film (1972) de Victor Perkins, que agora considero como o grande manifesto do classicismo expressivo no cinema. Mais uma vez, é aqui que Bordwell falha. Porque pensa que o classicismo é fazer um filme bem construído, ordenado e linear, claro e informativo. Mas se virmos VERTIGO ou LETTER FROM AN UNKNOWN WOMAN não saímos da sessão a dizer: “Olha que filme tão ordenado, claro e equilibrado!” Isto não é nada! É só um pretexto, a base, o nível mais raso do classicismo. O que interessava a Victor Perkins eram os aspectos expressivos do tema, da metáfora dramática, dos padrões, dos “motivos”, da duplicação das personagens, da ocultação do princípio e do fim, etc. Tudo isto vem de Perkins, de Robin Wood e outros críticos. E fui também profundamente influenciado por isto, enquanto jovem crítico.
Esta estranha coisa de ter lido estes dois livros definiu o meu destino enquanto crítico, que é o de encontrar uma maneira de ligar estes dois livros. O problema é que, para Perkins, um tal grau de formalismo não é significativo, porque não atinge o expressivo. Mas, para mim, tomar apenas em consideração o expressivo ou a metáfora dramática, muito à romance do século XIX, no melhor sentido de Henry James ou Flaubert, não atinge o cinema moderno do século XX, quanto mais o cinema do século XXI. Victor Perkins foi muito explícito sobre isso. Quando tratava de Godard e outros que tais, bloqueava. Tentou dar coerência a VIVRE SA VIE, através das suas técnicas interpretativas, mas não conseguiu. Para Perkins, serão fragmentos, uma colagem, um diário ou o que for, tudo aquilo que os adeptos de Godard afirmam, mas não chega a ser um filme rico e de várias camadas. É aqui que Perkins, e muitos dos que trabalharam na sua tradição, pararam. Não puderam estender o seu movimento para um outro tipo de cinema.



O destinatário que testemunha
Fico com a impressão que não quer deixar nada de lado, que deseja abranger todos os filmes e perspectivas críticas, ainda que tenha preferências. Como se possuído por uma generosidade, política ou religiosa, para com todas as formas de expressão cinematográficas...




 

É estranho, sim. Não sei de onde vem. Há em mim um investimento intenso, e reparo mais nisto à medida que envelheço, na noção de testemunho. Trata-se até de uma aflição para mim. Sinto que todas as pessoas, filmes e textos críticos, têm que encontrar o seu destinatário. O destinatário é a pessoa que se levanta e afirma que um determinado filme é bom, que foi feito para si. Que ela é, de alguma forma, a pessoa que dá valor àquele filme. Existe, portanto, um destinatário que prestará testemunho por essa coisa.
É também uma ideia expressa por Giorgio Agamben, no seu livro Profanações, quando se refere à figura do historiador como aquele que lembra. E por historiador Agamben entende o crítico, o analista, o teórico. Ou seja, as pessoas que escrevem sondando, de forma não ficcionada, as coisas. Enquanto os artistas, as pessoas que escrevem a poesia ficcionada, criam coisas. O artista é a pessoa que canta, o historiador a que lembra. A tragédia da vida é o historiador querer ser capaz de cantar, e o artista ser capaz de lembrar. Lembrar significa prestar testemunho. Ter um momento no mundo, na esfera pública, gravado algures, num artigo na internet, num livro, numa revista, num arquivo ou num registo qualquer que possa ser um dia encontrado, se tivermos sorte, onde estará aquilo que diz: “Eu prestei testemunho de... de algo... daquele filme por que mais ninguém prestou”.
Por isso fiz esta conferência – «Entities and Energies» – sobre THE ENTITY (1981) de Sidney J. Furie. Dei-me conta que ninguém no mundo ia prestar testemunho deste filme. Que o filme estava à espera que chegasse, e que é meu destino ter que dizer isto sobre THE ENTITY. Penso que toda a crítica está relacionada com isto, a um nível ou outro. Está relacionada com a lembrança activa, com o prestar testemunho de algo. Deste modo tão fugidio, no fim, cada um de nós terá apenas o mais pequeno dos fragmentos do testemunho. Haverá apenas um fragmento que restou, mas temos que escrever sobre ele.

Mas talvez essa ideia de prestar testemunho de tudo seja um pouco opressiva...

Claro que não podemos prestar testemunho de tudo. Espera-se que a coisa nos encontre. Espera-se algo que nos irá compelir, um encontro. É o filme que nos procura. Não é estar em casa e dizer: “Ah, que filme tão interessante! Aposto que consigo escrever um ensaio sobre ele”. Algo nos força a dizer. Viemos doutro lugar, chegamos como cidadãos do cinema para falar sobre um filme, porque ele nos compeliu quando a nós se mostrou. É isto que nos dá o direito de nos levantarmos e falarmos sobre um filme.


A sua actividade comporta essa dimensão do testemunho, mas também uma grande preocupação pedagógica com o sentido da crítica, numa espécie de metacrítica...




 
Pela mesma razão: prestar testemunho. Lecciono um curso sobre história da crítica e teoria cinematográfica com o qual tenho uma relação obsessiva. Basicamente, trato sobretudo de pessoas mortas, os grandes críticos de cinema já falecidos. Dou por mim a ter sonhos febris em que, como nos filmes de terror, tudo passa pela relação com o espírito dos mortos. Está-se a ressuscitá-los quando deles se presta testemunho. Dizemos o que dizemos para incitar a lembrar André Bazin, incitar a lembrar Guillermo Cabrera Infante...
Um belo livro poético de Abdelwahab Meddeb – The malady of Islam, que nem é sobre cinema, trata desta relação com o passado, no sentido da relação com os mortos. Cada um de nós tem que procurar um modo para apresar o espírito dos mortos, que nos podem ajudar naquilo a que nos propomos fazer no mundo presente em que vivemos. Para fazer aquilo que queremos temos de nos apropriar do seu espírito. Neste meu trabalho sobre a história da crítica, sinto por vezes que estou a erguer os críticos do reino dos mortos. Alguns deles foram tão rapidamente esquecidos que se trata de um esforço constante de rememoração. Mas não nos podemos deixar obcecar pelos mortos ou pelo passado, senão acontece mesmo como num filme de terror. Em A NIGHTMARE ON ELM STREET (1984) de Wes Craven, tem que se agarrar o espírito e trazê-lo para o nosso mundo. Mas não se quer que o espírito nos leve para a cripta, não se quer descer ao túmulo. Por isso tenho que ultrapassar esta espécie de obsessão mórbida ou funerária com o passado da crítica. Porque, no fim de contas, sabemos que tudo o que importa é o presente da crítica e o seu futuro, que tem de ser criado. Tem que se trazer o passado para o presente para criar a possibilidade de um futuro. É disto que a crítica trata.

A crítica e os seus celibatários
O ênfase que põe na crítica, apesar de apreciar Deleuze e outros filósofos recentemente chegados ao cinema, destoa de um contexto teórico que tende a privilegiar abordagens mais abstractas. Pode explicar porque é a crítica aquilo que “agarra” o cinema?


Tenho um grande empenho pela teoria e pela filosofia, que considero interessantes em si mesmas. Mas é da crítica que eu venho, apesar de ter começado a ler teoria do cinema muito cedo. Porque a crítica diz sobretudo respeito a uma preocupação material com os detalhes, com os momentos particulares dos filmes, entre outras coisas. Portanto, com o próprio objecto concreto e material que é um filme. Há também outra dimensão fulcral, a de poder mostrar uma cena, vê-la com alguém, desmontar e voltar a colá-la. Sempre me entusiasmou essa possibilidade do trabalho analítico. Enriquece o objecto analisá-lo dessa maneira, entrando numa relação crítica com ele. E existem muitos objectos cinematográficos no mundo, muitos mais do que algum de nós poderá ver. Para mim, sendo a crítica prestar testemunho, é também prestar testemunho da sua recriação. Recria-se o filme com palavras, através de descrições, de evocações, nas estruturas da escrita, do comentar, do ensinar. Trata-se de uma constante recriação do cinema, que o mantém vivo e ajuda a criar o seu futuro.


Por entre teorias demasiado abstractas e más recensões de jornal, por vezes emergem críticos que conseguem construir a complexidade e acabam por equilibrar o cinema com essa outra coisa, como se lhe queira chamar, do pensamento ou da escrita. Hoje, com o acentuar do interesse numa “filosofia do cinema”, deparamos com a terrível ingenuidade de saltar directamente do tema do filme para os conceitos filosóficos. E esse a meio caminho onde jaz a crítica, não só não é trabalhado, como negligenciado.

Existe, ou pode existir, uma má relação entre a teoria, o cinema e a crítica, como a que indica. Por vezes, não se trata sequer de uma abordagem ao tema, mas somente à mera intriga. Numa conferência recente, alguém falava sobre um dos filmes recentes de Álmodovar, citando Derrida. Essa pessoa afirmava que Derrida tem uma teoria sobre a dádiva, a dávida da morte, a dávida da vida, etc. E que, nesse filme de Álmodovar, a mulher oferece algo ao homem e que isso constitui a dádiva da vida de Derrida. Mas dizer isto é banal! Não é filosofia do cinema! Nem sequer é uma ideia, mas apenas a etiqueta de uma ideia. Colamos essa etiqueta à situação da intriga que a ilustra ou alegoriza e já está. Mas isto não é trabalhar sobre um filme.
Por isso são tão importantes as pessoas que estão verdadeiramente interessadas na questão de como um filme desenvolve algo para o espectador. De como o filme atinge esse ponto em que nos revela algo. Gilberto Perez, quando descreve de forma tão bela aquela cena em torno ao altar em NOSTALGIA de Tarkovski, faz sentir que algo está a nascer na cena, no filme e no espectador. Através do jogo paralelo entre as imagens e os sons, pelo estado indeterminado do espaço e do tempo, na mudança de cada plano para outro, algo está a nascer. Nunca se chega a conhecer este tipo de coisa se se disser apenas que Tarkovski é o tempo e que, logo, deve haver uma imagem-tempo porque tem passado e presente, etc. Isso é simplesmente ridículo!


Parece também entusiasmado com algumas novas tendências, como a personificada por Nicole Brenez em torno do figural. Ensaia uma aproximação a essa abertura que permite uma produção mais fácil de sentidos.

 


É efectivamente uma questão de gerar ou produzir ideias. E não apenas de ter uma ideia pré-concebida e ir amassando o filme com ela, sufocando-o. Um dos princípios mais brilhantes de Nicole Brenez é o de tomar o cinema como estando sempre à nossa frente. O cinema é mais rápido que nós. É mais teórico do que as nossas teorias, é mais intelectual do que os nossos conceitos. Estamos a tentar alcançar aquilo que o cinema já descobriu. A nossa luta é procurar e colocar isso em palavras, criando novos conceitos, escrevendo novos ensaios, etc. Esta é uma boa maneira de pensar. Porque, se repararmos, a maior parte das teorias estão, de certa maneira, a assumir que os filmes estão atrás de nós. Que estamos à sua frente e sabemos mais do que eles. Por isso é que podem dizer simplesmente: “Estão a ver? Eis o filme que ilustra a minha teoria”. Mas, se dissermos que os filmes estão à nossa frente, que nos estão a ensinar lições do que ainda não descobrimos, isso dá-nos um ímpeto, uma urgência em continuar a trabalhar, em continuar a ser críticos e a descobrir.

Energia, boa vontade e traço
E quanto à escolha de excertos dos filmes, sente alguma responsabilidade pelo bastante que deixa de fora? Trata-se quase de uma escolha de montagem...







Exactamente. É um acto criativo. Durante muito tempo era uma agonia para mim. Eu tinha vontade de ser um artista, essa figura da outra margem que eu não posso ser. Mas, através das conferências, com os excertos vídeo, etc., essa parte criativa acaba por ter lugar. Trata-se de uma performance ou mesmo de teatro, uma arte em que acabo por estar de alguma forma envolvido, para além da escrita, obviamente. Mas faço-o através das minhas palavras e das imagens e sons dos excertos. E esse é o meu pequeno passo para dentro do mundo do artista. Na verdade, adoro esse papel e sinto que é também muito bom para o público.
Há muitos modos diferentes de fazer uma apresentação sobre cinema. Mesmo completamente opostos, com evocações somente através das palavras. Vemos os filmes através do que se diz, através da descrição literária. É um método que também já utilizei. Mas prefiro mostrar, porque, para mim, a questão da energia é muito importante. Como uma força viva que quero retirar do ecrã. Quero ter o excerto vídeo, e escolher muito bem ele onde começa e onde acaba. E depois espero que a corrente eléctrica passe do excerto do filme e chegue até ao espectador e a mim. É assim algo de xamânico, em que digo: “Excerto, como vais tu intervir? Traz-me a energia! Passa-me a tua energia!” Alimento-me disso e continuo a falar.
Aparentemente, era assim que Manny Farber ensinava. Ele nunca mostrava o filme completo aos alunos. Apenas uma cena, uma bobine ou outra, de trás para a frente, com paralíticos em que o filme ficava a queimar no projector, dois ecrãs em simultâneo, etc. E continuava a falar ao improviso, dizendo que tinham que olhar para aquele cantinho do quadro, ou com os alunos na cabine de projecção e outras coisas assim. Trata-se de algo muito inspirador. Raymond Durgnat fazia a mesma coisa. Punha duas bobines do mesmo filme a passar ao mesmo tempo; por exemplo, a primeira e a última. Para que os estudantes pudessem constatar que havia uma relação, um padrão entre as duas partes do filme, mesmo à sua frente. Podiam ouvi-lo e vê-lo. Isto são como gestos artísticos, elementos com os quais podíamos fazer uma instalação numa galeria de arte. Ou numa aula ou sala de conferências, que é onde os pratico, a estes gestos ligeiramente artísticos dentro da crítica.

Pode descrever o projecto da Rouge, a sua revista de cinema online?



A Rouge, que dura já há cinco anos, foi, mais uma vez, algo de muito aparentado à questão do gesto artístico. Queríamos fazer uma revista em que pudéssemos escolher absolutamente tudo, como curadores. Mais do que em qualquer outro meio de publicação, com a internet surgem por vezes momentos em que abrimos a porta a outra pessoa. Vamos ao encontro de pessoas cujo trabalho admiramos, perguntamos-lhes se não desejam escrever algo que nunca tenham escrito antes, que nunca ninguém lhes tenha sugerido, mas que tenha sido sempre um anseio seu, pois nós aceitaremos. Não pagamos nada por isso, pois é uma produção precária, mas abrimos a porta. Essa pessoa, se quiser, pode atravessá-la e dar-nos alguma coisa para a revista, que a tornará disponível para o mundo.
Uma das coisas que desejávamos era uma escrita mais criativa. Um estilo mais poético, inventivo e literário, por assim dizer. Queríamos testar também algumas das novas relações entre texto e imagem, como no famoso número da imagem. Mas, para nós, a revista tem sobretudo a ver com as pessoas que lá estão. Para termos este tipo de espaço, na verdade, um espaço de amizade, a revista funciona através da boa vontade. E é sobre boa vontade, sobre a crítica como um espaço de boa vontade.
Por outro lado, queríamos que fosse não apenas jornalística ou teórica. Que incidisse sobre a crítica, mas não necessariamente sobre os filmes acabados de sair, seja o último Costa ou o último Spielberg. Queríamos incluir o passado, porque é dele que todos se esquecem nas publicações de cinema. Acaba tudo por se limitar ao último Haneke, ao último Eastwood, etc., pois ficámos de tal forma obcecados com os filmes acabados de sair. Nós, pelo contrário, interessamo-nos pelo passado vivo, pelo cinema que está vivo no presente.
Outro elemento muito importante são as vozes dos realizadores. É extremamente valioso termos a conferência de Victor Erice, o ensaio de Hou Hsiao-Hsien, o workshop de Costa, as reflexões de José Luis Guerín, por exemplo. Estas contribuições são também as mais difíceis de conseguir. Há várias resistências a estas iniciativas. Os realizadores ou estão atarefados, ou não têm vontade de colocar as suas ideias em papel, ou nem sempre estão naturalmente à vontade a fazê-lo... Mas é fundamental incluir as suas vozes, as suas reflexões, porque elas são frequentemente muito mais poéticas do que aquilo que cada um de nós pode conseguir. São perspectivas incríveis sobre todo o processo de criação do cinema, a que doutra maneira não teríamos acesso. Também gostamos de convidar outro tipo de praticantes, como artistas de outras áreas, seja um arquitecto, um romancista ou um poeta, para escreverem sobre cinema. E estamos sempre à procura deste tipo de objectos, tanto no presente como no passado, percorrendo constantemente os arquivos para encontrar coisas relevantes que nos tenham escapado anteriormente.


Preocupa-se com o outro lado, com o modo como os filmes chegam às pessoas? Tem alguma perspectiva sobre a actividade de programação? Sinto que existem pessoas que precisam de certos filmes, mas estes não lhes chegam...
Tive apenas uma pequena ligação à programação de cinema, através de alguns ciclos que organizei. Mas, em geral, fiquei bastante desencorajado com a experiência. Estava num contexto muito institucional, onde existe um programa oficial e só se consegue uma pequena oportunidade de uma semana, um evento especial ou parte de um festival. Para mim é duro assim. Com a Rouge criamos toda a revista do princípio ao fim. É desse modo que queremos trabalhar. Se quisermos acabar com a revista amanhã, acabamos. Não se consegue tomar conta de uma instituição e radicalizá-la no dia seguinte. Gostaríamos de o fazer, mas não conseguimos. O trabalho com as instituições é frequentemente muito desanimador. A Rouge é completamente alheia a todas as instituições. Não há dinheiro na revista, pois não recebemos nem pedimos dinheiro ao governo, nem à universidade, nem a ninguém. 
Trabalhar com certos festivais, cinematecas e institutos por esse mundo fora pode resultar numa coisa boa. Consegue-se um bom programa. Mas depois tudo desaparece. Fizemo-lo, tivemos as nossas duas semanas, se calhar até saiu um artigo no jornal, ou nem sequer saiu nada no jornal sobre isso, algumas pessoas vieram, outras falaram e disseram que tinha sido bom, e depois... parece que tudo se evapora. Como se não deixasse traço. Quando não deixa traço é duro. Ao menos com a Rouge temos o traço. A Rouge é o traço. O traço na internet. Está lá! Orgulhamo-nos disso.
Enquanto que programar, mesmo que deixe traços... Sabemos que um filme ou outro visto há dez anos na cinemateca nos afectou e levou a outras coisas no nosso percurso pessoal. Mas gostaríamos de conseguir um maior efeito colectivo quando programamos. Por exemplo, que duzentas pessoas começassem a dizer que não conseguem viver sem Pedro Costa! Isso é muito complicado de conseguir. Tal como é difícil conseguir a tracção que dê continuidade a uma iniciativa. Queres dar o próximo passo, construir em cima disso, fazer em maior, tomar conta dos festivais, das instituições ou da cinemateca, mas isso quase nunca acontece. E, se chegas ao ponto em que consegues tomar conta da cinemateca porque tens um exército atrás de ti, então tornaste-te no inimigo. És tu o próximo tirano! És tu o próximo terrível director e patrão daquela instituição. Recriaste a instituição. Portanto, é um problema complicado. Ter que ficar de fora das instituições, sabendo que por vezes precisamos de trabalhar com elas para que certos projectos possam acontecer, dado que tu próprio não queres ficar institucionalizado, não te queres tornar na imagem espelhada da instituição. Porque o que acontece sempre é que a instituição permanece, e tu não.

3 comentários:

nitesh disse...

thanks for sharing this, hoping its translated to english sometime.

André Dias disse...

As I mentioned in the interview's introduction, Adrian Martin and I agreed on an exclusive Portuguese language edition, since we share a common worry for cinephilia's linguistic diversity. It's also a way to honour the Brazilian and all other Portuguese language cinephiles. And there are already two good Adrian Martin's interviews available online in English.

Anónimo disse...

Como de costumbre, una entrevista muy interesante. El asunto más interesante para mí, puede parecer banal, pero no creo que realmente lo sea: haber escrito sobre "The Entity" para dar testimonio de su existencia. Y me hace gracia que fuera una película tan poco "respetable", sin autor, de un director mediocre, y tan interesante. Yo creo que hay películas sin importancia o fallidas que dan pie para empezar a pensar cosas interesantes.
Miguel Marías


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