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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

A epifania que nos resta (cont. IndieLisboa 2008: #16)

Num dos filmes mais bem comportados (e por isso também recompensados) do IndieLisboa 2008, o já referido YE CHE (o tal NIGHT TRAIN) de Diao Yinan, antes do seu estéril final em aberto, algo de curioso tinha acontecido de modo a tornar possível que a personagem feminina, exposta à situação limite de ter compreendido que o seu amante se prepara para a matar, ou pelo menos considera plausivamente essa hipótese, tenha afinal conseguido suster a fuga, retornar e submeter-se aquilo que tiver que ser.
No cinema contemporâneo, creio que as situações deste tipo, de revelações epifânicas, tendem a concentrar-se num elemento particular e crescentemente violento, muito mais certamente que a violência propriamente humana, já demasiado codificada, que é a presença dos animais.
No dito filme surge então, a dado momento, uma cena com um animal, vinda do nada, como uma contemplação súbita, e aparentemente injustificada, pela personagem ao mundo que a rodeia. Trata-se de um cavalo, que a mulher em fuga observa de repente na estrada a ser brutalizado pelos homens que serve, que o querem forçar a seguir puxando a carroça a que está preso. À medida que o cavalo resiste, vai sendo sujeito a vergastadas mais violentas. Depois de ver isto, a mulher estanca, não conseguindo continuar. Pensará, eventualmente, que não vale a pena viver assim, e que mais vale voltar para trás e aceitar o seu próprio destino, qualquer que ele seja. (Talvez haja aqui uma outra metáfora infiltrada, sobre a qual não me quero, no entanto, debruçar.)
O que me interessa voltar a salientar é como a introdução de um animal num filme altera hoje decisivamente o modo como o espectador se relaciona com o que nele ocorre, mas também com a própria consideração do que é permitido a um filme. Quer dizer, a definição do âmbito da acção em que um filme se justifica.
Não há a mesma tolerância, aliás, diria que não há nenhuma tolerância para o que pode ser representado por um animal, em particular a violência que sobre ele pode ou é efectivamente exercida. Talvez isto não seja um elemento completamente novo, mas foi certamente acentuado nos últimos anos. Parece haver uma hipersensibilidade aos animais, que, entre outros efeitos, torna as próprias personagens passíveis de obediência a essa alteração do comportamento e expectativas perante a vida animal, como neste filme chinês. A vida animal torna-se, no momento da sua mais brutal e generalizada manipulação, a epifania que nos resta.
A esta austeridade e controlo por parte do espectador, movido pela crescente má consciência social, há, no entanto, que responder com perversidade, como em geral faz Kiarostami, e não deixar os filmes cair no jogo da censura exercida pelo espectador. É assim que, no final de SEHNSUCHT de Valeska Grisebach, um homem, depois de construir uma casota em madeira para um coelho, e, profundamente infeliz com o desenvolvimento dos seus acidentados amores sinceros (a que pelo menos uma parte assinalável do público permanece insensível), tenta suicidar-se com uma caçadeira apontada ao coração. Hesitando, pousa a caçadeira, volta a pegar no coelho ao colo e vemo-lo fazer-lhe festas. Observamos, em seguida, o coelho comer vagarosamente um raminho de erva na casota. Até que, de súbito, corta para o homem que dispara a caçadeira contra o seu próprio corpo, não contra o do animal. Este coelhinho “armadilhado”, foco da atenção mais sentimental e infantilizada, um dos aspectos mais pregnantes da relação doentia que mantemos com os animais hoje, permite destruir as expectativas desinteressadas do espectador, obrigado subitamente a trocar essa atenção por uma outra, pelos sentimentos profundamente tristes de um homem sujeito ao amor, que se nos tornaram vagos, mas que o filme, não se deixando distrair, procura corajosamente realçar.

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