Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Mise en abîme #3: Não somos suficientemente fortes


Excerto de uma entrevista a Christian Petzold, realizador alemão do filme DIE INNERE SICHERHEIT (2000), sobre o excerto vídeo que mostrámos em baixo em «Mise en abîme #1». A entrevista completa
, realizada aquando da sua presença em Lisboa no ciclo «Nova Escola de Berlim», será publicada aqui na estreia do seu último filme YELLA.

André Dias – É interessante o que acontece na sequência de DIE INNERE SICHERHEIT em que a jovem personagem feminina à deriva acaba por ir dar a uma aula onde estão a mostrar NUIT ET BROUILLARD. O professor faz-lhe estranhas perguntas, uma espécie de lavagem ao cérebro...
Christian Petzold – Quando eu andava na escola, havia uma altura em que víamos filmes à tarde. Eram sempre muito chatos. Por vezes, havia um bom, como EFFI BRIEST (1974) de Fassbinder ou assim. Na maior parte dos casos, tratava-se de filmes com temas, que se podem discutir depois. Odeio este tipo de filmes! Ou seja, filmes com um problema.


Ilustrações...

Problemas ilustrados, com imagens. Tinha catorze anos e vimos NUIT ET BROUILLARD de Alain Resnais. Ficámos completamente chocados. E odiámos o professor que nos mostrou o filme, porque nos tinha tornado culpados de todos aqueles crimes. Penso que ele tinha um pouco de razão. Vivíamos nos anos setenta, tínhamos muito dinheiro, a Alemanha era um país rico, e as casas em que vivíamos eram fundadas sobre esses crimes. Sentíamos isso. Mas o professor também era culpado. Era muito duro: “Não conseguem perceber isso no filme? Não vêem o filme!” Como se estivéssemos no Processo de Nuremberga enquanto alunos. Disto lembro-me.
Mais tarde, quando comecei a ser um cineasta, um nerd ou algo assim, vi o filme pela segunda vez. E era um filme fantástico! E, quando percebi que o Georges Delerue tinha composto a música [na verdade, Hanns Eisler; Delerue fez apenas a orquestração], Alain Resnais era o realizador, Louis Malle tinha feito a câmara [apócrifo; a fotografia é oficialmente de Ghislain Cloquet e Sacha Vierny], que o Chris Marker tinha também trabalhado no filme [como assistente de realização], compreendi que este tinha sido, na verdade, o primeiro filme da Nouvelle vague. Por outro lado, sabemos que os alemães abandonaram o Festival de Cannes de 1955 por causa dele. Por isso, para mim, este filme é História, a história viva...
Depois, li nas biografias dos terroristas da RAF [Facção do Exército Vermelho] que este filme tinha constituido para eles uma linha de fronteira. A partir do momento em que o viram não podiam fazer parte da vida alemã normal. Há uma culpa que se tinha que retribuir, tinha que haver vingança. Nesta cena de DIE INNERE SICHERHEIT, queria mostrar todos estes aspectos num único momento.
Foi também uma situação muito dura, porque o homem que faz de professor tinha sido ele próprio professor anteriormente. Sabia exactamente o que eu estava a tentar fazer. Foi muito duro com os alunos, que eram verdadeiros alunos de Hamburgo. Quando estávamos a filmar, os mais jovens riam-se, porque sentiam-se um pouco envergonhados. Não tinham visto o filme anteriormente, viram-no ali do princípio ao fim, e a seguir começámos a filmar. Tinham ficado impressionados, e então o professor entra... Pode ver-se nas suas caras que estão chocados, como eu fiquei chocado vinte anos antes...


Mas conhecia a extensão daquilo a que chama de crimes?
Já tinha visto imagens antes. Conhecíamos imagens de Auschwitz e doutros sítios. Mas não foi por essa razão. Foi mais o comentário, as palavras, as da versão de Paul Celan, que dizem: “Que estamos a fazer agora? Onde estaremos quando os novos nazis chegarem? Seremos suficientemente fortes?” Se me perguntarem, digo que não o somos.

Sem comentários:


Arquivo / Archive