Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Notas demasiado soltas (IndieLisboa 2008) #8: O Anticrítico

Façamos o seguinte experimento de pensamento. Imaginemos que não é mais possível confiarmo-nos, como outrora ainda era, a um crítico cultural, por exemplo de cinema. Que aquela alegre e saudável entrega das nossas escolhas à mente iluminada de alguém que conhecia tantas coisas mais que nós, que viajava por esse mundo fora de festival em festival, que lia muitos livros grossos sobre coisas difíceis, entrevistas de realizadores, etc., que sabia muitas coisas raras, que, em suma, essa grande cabeça de cultura cinematográfica, esse maître à penser da sala escura, não existe lamentavelmente mais. Que estamos sós, e mal acompanhados, no mundo áspero da escolha cultural.
Obviamente, isto não quer dizer que não hajam já praticantes louváveis dessa nobre arte de mandar, que tenham desaparecido todos os aprendizes de “passadores”, que ninguém seja mais capaz de escrever umas frases aceitáveis e compreensíveis sobre um filme ou dois. Porque é mentira, ainda os há. E em actividade. Mas que diferença de tamanho para os nossos antigos guias! Estes de agora prometem-nos um filme tal e tal coisa, e pode ser que seja mesmo assim. Mas não nos vamos entregar às suas mãos, pois não? Não, porque fizemos da suspeita uma virtude e, para mais, já não fica assim tão bem fazer de filho. Como dizia Michaux, agora somos «filhos de filhos».
Neste contexto, neste ambiente geral de desconfiança que reina por toda a parte, julgo finalmente reunidas as condições adequadas, neste experimento de pensamento, para o surgimento de uma nova figura no planetário cinematográfico, para a irrupção do Anticrítico!
E que trará de novo o Anticrítico? Servirá igualmente de guia, mas ao contrário. À precariedade dos críticos positivos, que acertam de quando em vez nas nossas expectativas impossíveis de contentar, responde o surgimento do Anticrítico com o descontento absoluto dessas expectivas. Assim, se o Anticrítico vier e achar, deixa cá ver, que, por exemplo, o filme MADONAS de Maria Speth “é uma grande seca”, embora certamente por outras palavras mais sofisticadas e admissíveis na imprensa corrente, pelo seu fabuloso poder de inversão, esse filme revestirá aos nossos olhos encantos inauditos e do mais por demais subtil. É esse o singular poder do Anticrítico! A exactidão negativa absoluta, o enganar-se afinal sempre. Que boa nova! É toda uma outra confiança que ganhamos, com um desvio certamente, mas ainda uma certeza verdadeira.
Outro exemplo imaginário do seu poder: o filme ROZ (Pink) de Alexander Voulgaris (um grego bizarro) “é não sei o quê mas não vale a pena” [simplifico], zás!, esse filme transformar-se-á numa composição original de brilho comovente. Não duvidem do poder! Este, por enquanto ainda no reino fecundo da imaginação, não se limitará no vindouro ao valor geral do filme. Descerá ao detalhe, e elucidará, pelas virtudes da negação, as vantagens mais escondidas das obras. Eis como será em breve possível, assim o esperamos, que, no belíssimo (estado pós-negação) CHARLY de Isild Le Besco, a actriz surja como a única coisa que se safa de um filme apenas simpático (estado pré-negação). Quando a incrível potência do Anticrítico se nos antecipar, ao virar o mundo às avessas, a actriz, pela sua presença por vezes demasiado dura, fará, pelo contrário (ora aí está!), perigar o equilíbrio da obra. Todos entenderão assim a sua força! Bendito seja pois o escolhido que vier encarnar tal figura fulminante (e muito útil)!

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