Ao pé da letra #179 (António Guerreiro): A ideologia meteorológica
Há algo de anedótico nas palavras de uma ministra da Agricultura que, confrontada com a situação de seca, profere: “Esperemos que chova”. Neste desejo de conforto meteorológico reconhecemos não a consciência do desastre, mas a expressão típica do indivíduo urbano que vai passar o fim de semana fora e diz: “Esperemos que não chova”; ou daquele que, rumo a uma estância de inverno, traduz toda a sua expectativa hedonista num “esperemos que neve”. Nas palavras da ministra, subentende-se ainda uma proximidade com a linguagem dos boletins meteorológicos, os quais, tal como são difundidos nos media, abdicaram de toda a neutralidade e são enunciados exclusivamente do ponto de vista dos interesses e cálculos da vida urbana e dos lazeres burgueses: um “belo dia” é sempre o dia de sol (mesmo num inverno em que não houve um dia de chuva) e um “dia feio”, a requerer mil precauções e muitos apelos da “proteção civil”, é invariavelmente um dia de chuva. | A ciência meteorológica é assim traduzida em pura ideologia. Para um homem do campo e um agricultor, que se estão nas tintas para os avisos da “proteção civil” e que já perceberam que a catástrofe se anuncia, pelo contrário, nas sorridentes confirmações diárias de “bom tempo”, o “esperemos que chova” é uma prova de ignorância: a chuva é antecedida de sinais que eles sabem decifrar e, além disso, é inadiável, não admite espera. Na ausência desses sinais, ninguém espera que se dê o milagre da chuva. Esta ideologia meteorológica ao serviço do lazer do homem urbano é também uma manifestação da racionalidade técnica, que Spengler caricaturava nestes termos: “o homem moderno não pode ver o curso de um rio sem o transformar logo mentalmente em produtor de energia elétrica”. A distância que se criou em relação aos fenómenos naturais, como está patente no analfabetismo urbano em relação à chuva, é uma tragédia. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 18.2.2012. |
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