Ao pé da letra #171 (António Guerreiro): A miséria da ortografia
Estes linguistas que engendraram um acordo ortográfico que nos foi politicamente imposto têm uma ideia tão pindérica e instrumental da ortografia que jamais perceberão o ‘hénaurme’ em vez de ‘énorme’, de Flaubert, e a ‘dansa’, de Sophia – alguém consegue imaginá-la como ‘Sofia’ – de Mello Breyner Andresen, que a poeta justificava assim: “Deve-se escrever com ‘s’, como era antes, porque o ‘ç’ é uma letra sentada, uma letra pesada.” Podemos argumentar que há algo na literatura que passa por um texto irredutivelmente gráfico e podemos isolar nela o jogo da forma e da substância da expressão (ortho) gráfica. Mas todos nós desenvolvemos o sentido de um valor icónico-semântico-performativo da ortografia que faz com que sintamos como uma violência e uma amputação a queda das consoantes mudas, por exemplo. Aqueles que recusam seguir as normas do acordo ortográfico não são, em princípio, uns snobs: são objetores (isto é, ‘objectores’) de consciência. | Mas a questão coloca-se ainda com mais acuidade nas palavras que passam a ser utilizadas como conceitos. Alguém que escreva sobre a teoria da ‘acção’ (da vita activa), de Hannah Arendt, que esforço tem de fazer para prescindir daquele ‘c’ sem cair na debilidade? E alguém que estude a teoria da soberania de Carl Schmitt conseguirá rebaixar-se ao nível da ‘exceção’ que está no centro da noção schmittiana do soberano: “Soberano é aquele que decide sobre o estado de excepção”? Garantem-nos que tudo isto é uma questão de hábito, mas a verdade é que há uma espécie de arquigrafia que nenhuma reforma ortográfica conseguiu ainda liquidar (o Acordo, em muitos casos, parece aplicado nessa tarefa criminosa). Estes linguistas que colocaram os seus bons ofícios científicos ao serviço da elaboração deste Acordo são avatares anedóticos daquela que já foi considerada a “ciência farol das ciências humanas”. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 23.12.2011. |
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