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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #168 (António Guerreiro): Os animadores do gosto

O suplemento literário do El País publicou na semana passada uma “radiografia da crítica literária”, sob a forma de um inquérito feito a 20 “influentes líderes da opinião literária da Europa e da América” (assim os apresentava o jornal). Desse inquérito, podemos tirar as seguintes conclusões: a crítica literária está em crise em todo o lado e em risco de se tornar uma coisa do passado; a crítica literária não está a morrer de morte natural (ninguém defende que se tornou obsoleta), mas foi vítima de um conjunto de condições que levaram a que se tomasse de assalto a esfera pública literária. Na medida em que a crítica literária é uma matriz da crítica de todas as disciplinas artísticas, fácil é perceber o que se passa em todos os domínios. Houve um tempo, ainda não muito distante, em que o motivo de debate eram o modo como ela se situava no interior das ciências humanas (era o tempo em que a diferença entre a “crítica impressionista” e a “crítica universitária” tinha um valor importante na economia dos discursos).  
Esse tempo, e tudo o que nele estava em jogo, tornou-se caduco, ultrapassado pelas circunstâncias. E nada representa melhor essa caducidade do que as famigeradas estrelas, as listas, os balanços anuais, as antecipações de “o que aí vem”. Com estes métodos de classificação e de hierarquização, a crítica, que tinha consistido em transformar a opinião em conhecimento (como dizia Samuel Johnson), é solicitada a fazer o contrário: transformar o conhecimento em opinião. Nesta época pós-crítica e da hipertrofia da opinião, o papel do crítico está reduzido ao de um animador do gosto ou animador cultural. E tão impositivo se tornou este modelo que até os comentadores políticos surgem investidos nesse papel de animadores, onde os de gosto mais à esquerda contracenam com os de gosto mais à direita, num palco onde se desenrola o espetáculo de variedades. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 3.12.2011.

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