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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #170 (António Guerreiro): Significantes flutuantes

Em Portugal, o Governo anda atarefadíssimo a fazer reformas. Mas, se nos deslocarmos para Itália, também a prioridade são as reformas; e para Espanha, e para França... A palavra ‘reforma’ segue à frente, na torrente quotidiana de discursos. ‘Reforma’ tornou-se uma palavra vazia de sentido ou com um significado indeterminado, apta a ser preenchida, como quisermos, isto é, como os decisores políticos quiserem. É qualquer coisa, aliquid, uma palavra-maná. Foi o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss quem, na introdução à obra de Marcel Mauss, se referiu a estas palavras de tipo maná, sem referente nem sentido precisos, dando-lhes o nome de significantes flutuantes. Que se dê o nome de palavra-maná ao significante flutuante mostra bem como este é dotado de uma mágica substância mística. Cada governo precisa pelo menos de uma destas palavras para poder apoderar-se de um sentido que dê a ilusão de preencher o lugar vazio que ocupa. Para Cavaco, foi a ‘modernização’, para Guterres, a ‘solidariedade’, para Sócrates, a ‘tecnologia’, para Passos Coelho, a ‘reforma’.
A existência de significantes flutuantes deve-se a uma fundamental inadequação entre significantes e significados, isto é, a um excesso de significantes e a uma falta de significados. Saber tirar partido desta condição é a grande arte dos feiticeiros, dos xamãs, dos profetas. Sem esta inadequação não haveria palavra mágica, nem divina, nem qualquer invenção mítica e estética. Nem haveria poesia nem outras formas de literatura. E também nunca teria havido revoluções. O espantoso, apenas isso, é que os significantes flutuantes já não são daqueles que despertam o sonho, incitam à ação e nos elevam o olhar. Parecem reconduzir-nos sem ilusões para as camadas inferiores, sem substância mística, para as regiões do baixo materialismo, onde a forma se enforma e, redundandemente, se reforma.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 17.12.2011.

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