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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #169 (António Guerreiro): Homo culturalis

O regozijo nacional por o fado ter sido classificado pela UNESCO como Património Cultural Imaterial não nos deve fazer esquecer que não há foco de luz que não projete também a sua sombra. E, neste caso, a sombra é aquela que, expandindo-se a alta velocidade, cobre o mundo de museus e mausoléus. Com a noção de “património imaterial”, o museu estende-se mesmo além do espaço físico e captura no seu culto comportamentos, práticas, formas de vida. Aloïs Riegl, diretor de um museu em Viena e considerado o inventor da noção moderna de património, escreveu no princípio do século XX um livro sobre o culto moderno dos monumentos, onde analisa o dilema destruição/conservação (um dilema muito moderno, muito próprio das épocas das vanguardas), na medida em que a destruição pode ser criadora e a conservação esterilizante.  
Mas não se pode pensar a museificação sem o seu correlato, a culturalização: a capacidade pan-inclusiva da cultura, os mecanismos de homogeneização de que ela é dotada, enquanto dissolvente de todas as asperezas. Anima-a um dispositivo mortal de apaziguamento, como observou algures Blanchot: “Que existam acontecimentos interessantes e mesmo importantes e que, no entanto, nada possa ter lugar que nos perturbe, esta é a filosofia de todo o serviço da cultura.” O homo culturalis é uma espécie triunfante, em estado de proliferação cancerosa. É a forma encarnada de filisteísmo. Onde quer que ainda exista vida, experiência e aura, lá estará o homo culturalis para edificar um museu, uma reserva, um parque. É certo que, patrimonializado, o fado não fica submetido a nada, nenhuma incumbência o vem condicionar, e difunde-se o seu acrescido capital simbólico. A sombra de que falávamos está noutro lado: nas representações plácidas e tranquilizantes, com o brilho do ouropel, sem pecado nem partes malditas, induzidas por estas operações estético-culturais de patrimonialização e museificação.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 10.12.2011.

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