Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Eram os Anos 70
Ciclo da Cinemateca Portuguesa, Maio/Setembro 2009
«Em 2008, a Cinemateca Portuguesa‐Museu do Cinema organizou um vasto Ciclo dedicado aos anos 60 (“Eram os anos 60”), que foi acompanhado pela publicação de uma brochura. Em 2009, dedicamos um Ciclo semelhante aos anos 70. A partir de Maio, organizaremos um Ciclo de sessenta filmes, dividido em diversos capítulos, obedecendo ao princípio de um filme por realizador: A “Nova Hollywood”; Autores Europeus; Autores Americanos; Portugal; Autores do Cinema Mundial; Cinema Popular; À Margem; Documentários. Coppola, De Niro, Spielberg, Visconti, Fellini, Antonioni, Fassbinder, Rohmer, Altman, Straub‐Huillet, Bergman, Panfilov, Eustache, Lino Brocka, Sembene, Kiarostami, Syberberg e Arrabal serão alguns dos realizadores representados, ao lado de filmes de artes marciais, de horror, de rock, de alguns documentários emblemáticos e de alguns exemplos do que se fez em Portugal, que foi sem dúvida um dos países que mais mudou naquele decénio.
Se os anos 60 marcaram um período de estiagem em Hollywood, cujo cinema estava em completa desfasagem com as mudanças que ocorriam no mundo, os anos 70 marcaram a recomposição e o ataque em força de Hollywood, através do que se chamou a “Nova Hollywood”: filmes feitos por cineastas jovens, conscientes das mudanças culturais que tinham ocorrido e capazes de trabalhar num sistema diferente do antigo sistema dos estúdios. Por outro lado, na Europa, enquanto mestres consagrados chegavam à plena maturidade e ao reconhecimento público, havia espaço para aventuras formais radicais, de que são exemplos os filmes de Rivette, Eustache ou Schroeter. E na Ásia, na América Latina e em África, “autores” e entertainers estavam activos. Em “Eram os Anos 70”, os filmes não serão apresentados em ordem cronológica, mas pelos diversos “capítulos” que estruturam o Ciclo. Para oferecer maior variedade aos espectadores, os diversos capítulos serão entremeados no decorrer do ciclo.»

Antonio Rodrigues, programador
«Acompanhando a retrospectiva alusiva ao cinema da década de 70, programada em 60 filmes e oito capítulos nos meses de Maio, Junho, Julho e Setembro, a Cinemateca editou um catálogo "Eram os Anos 70" com organização literária de Antonio Rodrigues e concepção gráfica de Luís Miguel Castro.
A edição, que contempla uma cronologia desses anos e a lista dos filmes programados, conta com textos originais de Antonio Rodrigues ("E Quase Tudo o Tubarão Levou", "O Itinerário de Um Decénio-Serge Daney") e André Dias ("O Período Cor de Rosa") bem como com a publicação de "Uma Conversa Inacabada com João Botelho" por Alexandre Obrenovich e a tradução portuguesa de "Artes Marciais-Modo de Usar" por Olivier Assayas e Charles Tesson.»
O período cor-de-rosa
André Dias
O cinema “moderno”, uma provocação sem objecto e um luto sem fim.
Serge Daney, 1982

1. Uma particular cinefilia não se dá indiferente aos acidentes que a perturbam. Procura, para lá da apetência por determinados filmes, traços que a singularizem, que a justifiquem como anomalia que é. E, ao longo dos anos fechados, certas coincidências acabam por revelar-se significativas. Por exemplo, ter-se dado o caso de descobrir alguns filmes, tornados depois entre os preferidos, em condições estranhas, nada ideais; em concreto, em cópias manchadas de um tom rosa, mais propriamente, num quase insuportável magenta. Assim nos chegaram, lembramos: OTHON (1970) de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, MILESTONES (1975) de Robert Kramer, SON NOM DE VENISE DANS CALCUTTA DÉSERTE (1976) de Marguerite Duras, JEANNE DIELMAN (1975) de Chantal Akerman, PROVIDENCE (1977) de Alain Resnais, entre outros. Depois deparamo-nos com fotografias de cena ou fotogramas reproduzidos, e não lhes reconhecemos a cor. Eram, no entanto, aqueles os filmes vistos. Algo na nossa experiência de espectador tinha ultrapassado a circunstância nefasta, negligenciando-a. Uma força tinha atravessado a cor, os filmes ainda vivos acercando-se a nós...
As “cópias cor-de-rosa” são um fenómeno explicável historicamente pela substituição progressiva, a partir dos anos 50 e por razões de simplicidade e economia, do sistema Technicolor pelo Eastmancolor. A instabilidade química intrínseca das emulsões positivas do novo sistema manifestava-se frequentemente no rápido desvanecimento da cor, com a particularidade de ser a resistente camada magenta a última a perder densidade. O problema começa com uma dominante castanha nas sombras, perca de contraste, o céus azuis ficam brancos, tudo tende a uma tonalidade vermelha...

No final, resta apenas um inundante rosa que banha o filme por completo. Esta limitação tecnológica terá sido aparentemente corrigida ou atenuada no início dos 80 ; no entanto, para um cinéfilo pouco conhecedor de detalhes químicos e históricos, o mal já estava feito. A coincidência temporal e a afinidade estilística daqueles filmes cedo deu azo a uma interpretação paranóica, que incluía especulações delirantes sobre o menosprezo de um certo tipo de cinema por parte dos poderes da preservação, etc. E, na verdade, que melhor estatuto de menoridade haverá, para um cinema relativamente contemporâneo, do que a dificuldade em encontrar cópias novas e em condições?
Esta degradação cromática, à qual nos apegámos, parece ser o mote descritivo adequado para um certo cinema. Um “período cor-de-rosa” da história do cinema, assim tão inabilmente concebido, na soberba de partir exclusivamente de um acidente da experiência de espectador, e negligenciando obviamente a incongruência da inclusão dos filmes a preto e branco ou dos que não foram vistos nesse estado, decorre antes de mais da seguinte afirmação: é unicamente no interior dessa experiência de espectador que se pode fundar toda e qualquer “ciência” ou, mais modestamente, ter pensamentos perante o cinema. Tal tentativa de periodização é também, e sobretudo, um gesto conscientemente desesperado de recuperação da parcela mais desprezada da história do cinema; uma parcela transversal e rarefeita, pequenos pontos verdadeiramente excêntricos e extremados no mar avassalador da indiferente produção...
(continua)
in [catálogo do ciclo] Eram os Anos 70, org. Antonio Rodrigues,
Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2009, pp. 90-115.

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