Por detrás dos seus óculos escuros, obrigada a reparar no mundo que lhe era estranho nas ruas, nas pessoas e nos gestos
« A meados da sua história, o cinema inflectiu o seu caminho. Costumo pensar que a inflexão se revelou totalmente quando, na Viagem em Itália, ao guiar em direcção a Nápoles, Ingrid Bergman, por detrás dos seus óculos escuros, foi obrigada a reparar no mundo que lhe era estranho nas ruas, nas pessoas e nos gestos que Rossellini interpôs naquele trajecto com um "tom documental". Um mundo para trás (o mundo dela e do cinema dela), outro pela frente, e uma barreira que, ao longo da viagem, começa a desfazer se. É claro que a inflexão não começou aí, é certo que não houve sequer um momento específico de viragem, mas é para mim claro que a mudança existiu, e que, através dela, podemos falar em duas metades diferentes desta história. Na primeira, um cinema que procurou criar um espaço e um tempo "autónomos", e que, na sua expressão maioritária, incorporou as convenções dramáticas e literárias do século (anterior) em que nascera. Depois, um cinema que aprendeu progressivamente a fazer a síntese entre isso e o seu potencial reprodutor, que procurou trabalhar (o que significa transfigurar) o espaço tempo real (e já não apenas "reconstitui-lo"), que, em particular, levou muito longe a exploração do tempo, e no qual a ideia de "história" e a forma de contá la começaram a libertar se das convenções anteriores. Com a segunda metade do século (com o que costumamos chamar cinema "moderno") não morreu a fábrica dos sonhos: mas nasceu uma percepção muito mais marcada de que, em cinema, o sonho é construído a partir da tangibilidade das coisas.
Reconhecido isto, não é claro que, na primeira metade desta história, o território do documentário em si mesmo foi um dos territórios pelos quais se avançou para a (ou se antecipou a) natureza da segunda? E não é claro que, na segunda metade do século XX, grande parte do cinema moderno extremou simultaneamente os pólos de controle e não controle de que o documentário foi e é laboratório? »
José Manuel Costa, «Para além do documentário», O olhar de Ulisses – Resistência, Porto 2001, pp. 328-339.
Reconhecido isto, não é claro que, na primeira metade desta história, o território do documentário em si mesmo foi um dos territórios pelos quais se avançou para a (ou se antecipou a) natureza da segunda? E não é claro que, na segunda metade do século XX, grande parte do cinema moderno extremou simultaneamente os pólos de controle e não controle de que o documentário foi e é laboratório? »
José Manuel Costa, «Para além do documentário», O olhar de Ulisses – Resistência, Porto 2001, pp. 328-339.
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