Fungos
Numa certa aldeia ou cidade de uma história do Italo Calvino os governantes eram decapitados quando chegava o fim do seu mandato. Sabiam-no à partida, era regra por ali (A Memória do Mundo).
Não há na minha cabeça espaço para olhar. Cortaram-se essa disponibilidade pela raiz. Quando a cultura ou a arte se mistura com coisas pequenas, sinto-me pequena também. Encolho-me, entreolho-me, arrepio-me. Tudo é coberto por uma escuridão sombria. Estou aí, nessa escuridão. E o único filme que me vem à cabeça é o Branca de Neve e o seu discurso político e áspero sobre a produção, e a arte, e o lugar do espectador. Estou dentro dessa sala, oiço vozes no fundo da tela, não sei para onde olhar, mas aqui nem os olhos posso fechar.
Quem manda na cultura da cidade de Lisboa fá-lo porque sabe que não pode ser decapitado, não será. E olham para o seu cargo como uma terra fértil de oportunidades sórdidas (ou porcas) impedindo o crescimento, e o olhar limpo de quem segue essa cultura, de quem dela vive ou nela encontra matéria.
A questão que aqui quero tratar é triste e feia. Concreta. O que aqui fica é um desabafo.
A Câmara Municipal de Lisboa e concretamente o Pelouro da Cultura deixou de ter dinheiro para pagar horas extraordinárias aos seus funcionários. Daqui resulta uma impossibilidade dos organismos municipais (bibliotecas, Videotecas, Casas Fernando Pessoa, teatros) apresentarem programações culturais fora do período laboral. Deixa de ser possível uma programação a partir das 17h30 da tarde, ou aos fins-de-semana. A Câmara deixa de assinar acontecimentos culturais de relevo e com possibilidade de público.
Acabou-se então a cultura em Lisboa, poderíamos perguntar? Não. Porque existe uma EGEAC (Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural). No mandato do Pedro Santana Lopes foi semi-privatizada uma empresa municipal que já existia para gerir os equipamentos culturais da cidade. Uma semi-privatização significa na prática que esta empresa recebe do orçamento da câmara um X para gerir os seus equipamentos, mas pode simultaneamente angariar patrocínios, ou contratar pessoal, ou assimilar resultados de bilheteira, não se regendo assim pelas mesmas regras dos restantes organismos municipais, onde a contratação e angariação de fundos é altamente dificultada pelo labirinto infinito de uma burocracia complicada e retrógrada. Neste caso em concreto, dado que é semi-privatizada, a EGEAC continua a pagar horas extraordinárias aos seus funcionários, permitindo assim que os equipamentos por si geridos continuem a apresentar programação cultural. É semi e não totalmente privatizada porque recebe dinheiro da câmara e dela está semi-dependente. Nenhum lucro da EGEAC reverte para a Câmara ou Pelouro da Cultura. E portanto os equipamentos que antes desta semi-privatização eram dos cidadãos, habitantes de Lisboa (veja-se o caso do Castelo de S. Jorge, gerido e explorado pela EGEAC), são hoje dos accionistas e directores da EGEAC. São eles que ganham com o lucro desta empresa. Tendo sido profundamente contestada, contestação que levou por exemplo à saída desta empresa do Fórum Lisboa, a EGEAC é hoje uma espécie de “salvadora da pátria” tornando-se imprescindível, incontornável entidade cultural, que assegura todas as actividades culturais da cidade. Sem ela, sim, a cultura tinha acabado na capital. Pergunto-me, no entanto, porque é que a Câmara não tem dinheiro para pagar aos funcionários dos seus equipamentos culturais, mas sim para assegurar a existência de uma tal empresa que impede e dificulta (apesar do objectivo da sua semi-privatização ter sido exactamente o oposto, ou seja permitir e facilitar) e conspurca o acesso dos munícipes à cultura? Não sei se a resposta poderá estar no facto da pessoa que decidiu não haver dinheiro para uma coisa e sim para outra ser a mesma que dirige essa tal empresa. Falo do Vereador da Cultura de Lisboa, também director da EGEAC. Fecham organismos culturais, fecham casas de cultura, bibliotecas, mas a cultura sobrevive. Assim.
O Estado demite-se do seu papel regulador. O acesso livre à cultura e à arte é negado, corrompido, estripado. E a EGEAC cresce para lá do seu próprio nome, saindo de repente da gestão de equipamentos, e passando para o lado da programação e organização. De repente no Indie Lisboa, ou na Monstra (os exemplos de que agora me lembro) que não aconteceram ou não vão acontecer em equipamentos geridos pela EGEAC, esta empresa aparece como co-organizadora. Presumo por isso que tenha tido presença na programação, e na produção (porque se tivesse uma contribuição meramente monetária seria apresentada como patrocinadora). E anuncia-se a re-abertura do cinema S.Jorge com um extraordinário festival de cinema digital sem que as razões pelas quais o cinema foi fechado tenham sido solucionadas (o tecto continua em risco de desabar, a cave continua imunda, as salas pequenas continuam sem condições de segurança, sem arejamento ou ar condicionado, as saídas de emergência continuam inexistentes…). Porque esteve então fechado? E porque abre exactamente agora, quando tanta coisa deixa de funcionar por falta de verba?...
Há uma cultura de fungos, aqui na capital.
Não há na minha cabeça espaço para olhar. Cortaram-se essa disponibilidade pela raiz. Quando a cultura ou a arte se mistura com coisas pequenas, sinto-me pequena também. Encolho-me, entreolho-me, arrepio-me. Tudo é coberto por uma escuridão sombria. Estou aí, nessa escuridão. E o único filme que me vem à cabeça é o Branca de Neve e o seu discurso político e áspero sobre a produção, e a arte, e o lugar do espectador. Estou dentro dessa sala, oiço vozes no fundo da tela, não sei para onde olhar, mas aqui nem os olhos posso fechar.
Quem manda na cultura da cidade de Lisboa fá-lo porque sabe que não pode ser decapitado, não será. E olham para o seu cargo como uma terra fértil de oportunidades sórdidas (ou porcas) impedindo o crescimento, e o olhar limpo de quem segue essa cultura, de quem dela vive ou nela encontra matéria.
A questão que aqui quero tratar é triste e feia. Concreta. O que aqui fica é um desabafo.
A Câmara Municipal de Lisboa e concretamente o Pelouro da Cultura deixou de ter dinheiro para pagar horas extraordinárias aos seus funcionários. Daqui resulta uma impossibilidade dos organismos municipais (bibliotecas, Videotecas, Casas Fernando Pessoa, teatros) apresentarem programações culturais fora do período laboral. Deixa de ser possível uma programação a partir das 17h30 da tarde, ou aos fins-de-semana. A Câmara deixa de assinar acontecimentos culturais de relevo e com possibilidade de público.
Acabou-se então a cultura em Lisboa, poderíamos perguntar? Não. Porque existe uma EGEAC (Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural). No mandato do Pedro Santana Lopes foi semi-privatizada uma empresa municipal que já existia para gerir os equipamentos culturais da cidade. Uma semi-privatização significa na prática que esta empresa recebe do orçamento da câmara um X para gerir os seus equipamentos, mas pode simultaneamente angariar patrocínios, ou contratar pessoal, ou assimilar resultados de bilheteira, não se regendo assim pelas mesmas regras dos restantes organismos municipais, onde a contratação e angariação de fundos é altamente dificultada pelo labirinto infinito de uma burocracia complicada e retrógrada. Neste caso em concreto, dado que é semi-privatizada, a EGEAC continua a pagar horas extraordinárias aos seus funcionários, permitindo assim que os equipamentos por si geridos continuem a apresentar programação cultural. É semi e não totalmente privatizada porque recebe dinheiro da câmara e dela está semi-dependente. Nenhum lucro da EGEAC reverte para a Câmara ou Pelouro da Cultura. E portanto os equipamentos que antes desta semi-privatização eram dos cidadãos, habitantes de Lisboa (veja-se o caso do Castelo de S. Jorge, gerido e explorado pela EGEAC), são hoje dos accionistas e directores da EGEAC. São eles que ganham com o lucro desta empresa. Tendo sido profundamente contestada, contestação que levou por exemplo à saída desta empresa do Fórum Lisboa, a EGEAC é hoje uma espécie de “salvadora da pátria” tornando-se imprescindível, incontornável entidade cultural, que assegura todas as actividades culturais da cidade. Sem ela, sim, a cultura tinha acabado na capital. Pergunto-me, no entanto, porque é que a Câmara não tem dinheiro para pagar aos funcionários dos seus equipamentos culturais, mas sim para assegurar a existência de uma tal empresa que impede e dificulta (apesar do objectivo da sua semi-privatização ter sido exactamente o oposto, ou seja permitir e facilitar) e conspurca o acesso dos munícipes à cultura? Não sei se a resposta poderá estar no facto da pessoa que decidiu não haver dinheiro para uma coisa e sim para outra ser a mesma que dirige essa tal empresa. Falo do Vereador da Cultura de Lisboa, também director da EGEAC. Fecham organismos culturais, fecham casas de cultura, bibliotecas, mas a cultura sobrevive. Assim.
O Estado demite-se do seu papel regulador. O acesso livre à cultura e à arte é negado, corrompido, estripado. E a EGEAC cresce para lá do seu próprio nome, saindo de repente da gestão de equipamentos, e passando para o lado da programação e organização. De repente no Indie Lisboa, ou na Monstra (os exemplos de que agora me lembro) que não aconteceram ou não vão acontecer em equipamentos geridos pela EGEAC, esta empresa aparece como co-organizadora. Presumo por isso que tenha tido presença na programação, e na produção (porque se tivesse uma contribuição meramente monetária seria apresentada como patrocinadora). E anuncia-se a re-abertura do cinema S.Jorge com um extraordinário festival de cinema digital sem que as razões pelas quais o cinema foi fechado tenham sido solucionadas (o tecto continua em risco de desabar, a cave continua imunda, as salas pequenas continuam sem condições de segurança, sem arejamento ou ar condicionado, as saídas de emergência continuam inexistentes…). Porque esteve então fechado? E porque abre exactamente agora, quando tanta coisa deixa de funcionar por falta de verba?...
Há uma cultura de fungos, aqui na capital.
por Inês Sapeta Dias
1 comentário:
O que me lixa nesta história é que o enfoque dado é que existem não sei quantos funcionários públicos que vão deixar de receber horas extarordinárias quando se deveria estar a falar mais naquilo que vai deixar de ser feito: festivais, mostras, ciclos. E, os "tipos" têm sido muito bons a passar essa informação junto da opinião pública. Porque se fica a acreditar que vamos poupar todos uma data de massa, o que nemé relevante porque se continua a gastar noutras enormiadades. Lisboa, que é uma capital europeia, é que vê reduzida a sua programação cultural. Mas como nestas coisas da cultura tudo funciona em termos de nichos ninguém anda a fazer muito barulho porque nem querem saber. É a massa amorfa.
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