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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #192 (António Guerreiro): Entrevistas e tagarelice

As entrevistas a escritores, que outrora constituíam um importante material para uso futuro, tornaram-se o género jornalístico mais enfadonho e destituído de interesse: da maior parte das entrevistas não ressalta uma única frase que um arquivo útil deva salvar. O ingresso na categoria de escritor tornou-se uma coisa banal e, por conseguinte, enorme é a possibilidade estatística (acrescentada aos critérios editoriais) de as entrevistas serem uma conversa muito banal e de mera autopromoção. Não há, porém, nenhuma razão para pensar que, em termos absolutos, não existem tantos escritores como antigamente (isto é, uns raros), capazes de, em circunstâncias favoráveis, assegurar uma entrevista suculenta. Mas a principal razão do carácter inócuo da maior parte destas entrevistas não está nesta determinação estatística. É uma questão de ritual. Uma entrevista era uma dádiva a alguém que se preparava para a receber (“O escritor X dá uma entrevista a Y”).  
Ora, a maior parte das entrevistas a escritores que lemos hoje são uma obrigação profissional que ambos cumprem: o escritor é enviado pela editora em tournée (se for um escritor de sucesso internacional) e os jornalistas apanham o escritor na sua tournée, que é feita exclusivamente para isso, segundo os protocolos estabelecidos. Eis uma fórmula comum usada pelas editoras nos seus contactos com os media: “O escritor X está à disposição dos jornalistas, no hotel Y, das tantas às tantas, para entrevistas.” O que daqui resulta são entrevistas em série, de gente entediada, mas tão profissional que, se necessário, dá o que não tem a alguém que não o quer. Nestas circunstâncias, raras são as possibilidades de aparecer um Thomas Bernhard, que olha para o gravador, pergunta ao jornalista se já está a funcionar e, recebendo uma resposta afirmativa, grita alarmado, em italiano, consciente do risco e do jogo: “dramma giocoso!”

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 19.5.2012.

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