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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #191 (António Guerreiro): No reino dos equívocos ortográficos

Na semana passada, cometi a imprudência de usar uma palavra contra a qual o Acordo Ortográfico dispara com uma fúria cega as suas regras de aniquilação e entra em desvario: a palavra ‘panóptico’, que designa uma arquitetura carceral, o panopticon, imaginada no século XVIII por Jeremy Bentham. Quem reviu o texto emendou para ‘pan-ótico’, por analogia com outras palavras formadas com “pan” que levam hífen. Mas o mais importante é a supressão do ‘p’, que parece obrigatória, segundo o AO. Ora, tratando-se de uma palavra que sempre teve um uso culto, nunca conheceu outra pronúncia que não fosse a da “norma culta”. Ou seja, “panóptico”. Mas ninguém, nem sequer quem reviu o texto, tem obrigação – e os meios, porque não se fixou ainda um vocabulário ortográfico comum – de saber tudo aquilo que é necessário para aplicar corretamente uma das muitas exceções que o AO consagra para tentar salvar as suas regras: teria de saber que em todo o espaço da língua portuguesa a palavra se pronuncia com ‘p’ e que, por conseguinte, não há lugar à supressão da consoante, porque ela não é muda (note-se que tal saber impossível também é requerido para o uso das muitas facultatividades).  

Uma amiga brasileira confirmou-me por e-mail: “Nós aqui dizemos e escrevemos ‘panóptico’ como vocês.” Como vocês? Isso era dantes, porque o AO, estúpido como é – de uma estupidez cómico-grotesca –, promove constantemente erros de hipercorreção, sem fornecer meios que os possam evitar. E, hipertélico, acaba por ir além dos seus próprios fins e anulá-los. Sem o ‘p’, a palavra refere-se à audição e não à visão, ou então é usada no campo da química para designar um corante. Não é tudo isto absurdo, próprio de uma terra onde Ubu é rei, ainda por cima quando temos um ministro da Educação e Ciência que, antes de o ser, corroborou famigeradas denúncias de “imposturas intelectuais”?

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 12.5.2012.

2 comentários:

Maria Teresa Ramalho disse...

Boa tarde
Em primeiro lugar os meus parabéns pelo verdadeiro serviço público que é a publicação das crónicas de AG que,como anti-acordista militante revisito, por vezes, e com prazer. Não conhecia o termo "panóptico" mas a referência a panótico como sendo aplicado, em química, a certos corantes levou-me a googlar os dois termos. Eis uma conclusão provisória: o termo “panoptic dye”, corante para certas aplicações no domínio da histologia, ocorre com muito maior frequência do que “panotic dye” (este último geralmente em publicações de origem brasileira. Aliás, por definição, corante está associado a cor, perceptível pela visão.

André Dias disse...

Como deve ter reparado, o António Guerreiro publica agora uma crónica no suplemento Ípsilon do Público, que já não transcrevo. Ao que sei, a última foi precisamente dedicada à questão do Acordo Ortográfico.


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