Ao pé da letra #190 (António Guerreiro): O Estado liberal
No seu curso sobre o nascimento da biopolítica, Michel Foucault afirma que “o panóptico é justamente a fórmula de um governo liberal”. O panóptico, recordemos, é uma arquitetura carceral imaginada pelo filósofo Jeremy Bentham, no século XVIII, que permitia a um só indivíduo, instalado num determinado ponto da estrutura, ter um ângulo de visão total sobre o conjunto das celas dos prisioneiros, sem que estes pudessem perceber que estavam a ser observados. As análises de Foucault são fundamentais para percebermos este aparente paradoxo com que estamos confrontados e do qual passámos a ter uma dolorosa experiência quotidiana: quanto mais o Estado pretende reduzir-se a um regime de frugalidade e intervir o menos possível, mais ele desenvolve os seus panópticos, os seus dispositivos de controlo e vigilância, as suas práticas e tecnologias policiais (em suma, um Estado que suspende o fundamento político e ganha fundamento policial). | O bom funcionamento do Estado liberal só é conseguido à custa da submissão da sociedade e dos indivíduos a um regime de transparência total, até do que antes pertencia à esfera da vida privada. Deste modo, quando o Estado liberal celebra a “sociedade civil”, ele não está a celebrar o seu exterior, o que lhe permite governar apenas o suficiente, está a celebrar simultaneamente algo que é o seu produto: a sociedade civil é o que é autorizado pelo Estado e que ele pode reivindicar como prova de que funciona de maneira eficaz. Tendo em conta estes paradoxos, não admira que a questão da segurança esteja hoje tão presente no discurso político. Isso mostra bem que o liberalismo político e económico triunfante já não tem a segurança conquistadora que teve no passado: tornou-se louco, cínico, inquieto, reenviando para a verdade nua das suas contradições atuais e da sua perda de sentido. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 5.5.2012. |
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