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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #175 (António Guerreiro): O desconforto da burguesia

Assistiu-se no século XX, nos países ocidentais, à emergência de uma burguesia remunerada. É possível que no século XXI, a avaliar por alguns sinais que emergem com evidência, se assista ao seu declínio. Aquilo que no discurso político se chama “ataque à classe média” corresponde à instauração de uma nova ordem que até há pouco tempo não era previsível. A expansão e universalização da lei do mercado precisou também da generalização do que começa agora a ser visto como um sobressalário, até porque a paz social era garantida através da promessa aos trabalhadores da satisfação das suas necessidades, cada vez mais amplas, quer porque o horizonte se alargava quer porque foram sendo suscitadas à medida das exigências das exigências do sistema económico. Ora, neste momento, em que a lei do mercado se estendeu ao mundo inteiro, uma nova ordem dá os seus primeiros passos, com base na convicção pragmática de que a burguesia custa demasiado caro e “vivemos acima das nossas possibilidades”.  
Daí, a entrada em cena de uma nova regra da ação e do discurso políticos: a de que é necessário empobrecê-la, subtraí-la à sua “zona de conforto”. Mas, deste modo, vem à luz uma contradição fundamental: como é possível manter o desenvolvimento capitalista ao mesmo tempo que se dá o declínio desta burguesia maioritária? Uma questão afim é a de pensar criticamente o trabalho e dar conta das suas metamorfoses, quando é a privação do trabalho e a humilhação do desemprego que estão a fazer-nos regressar a modelos de dominação conhecidos de fases anteriores do capitalismo. Marx, que tinha enunciado como axioma da economia política que os coveiros da burguesia seriam também os coveiros do capitalismo, estava longe de prever o que já está a ser anunciado por alguns índices: que o próprio capitalismo será em breve o coveiro da burguesia.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 21.1.2012.

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