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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #173 (António Guerreiro): A engenhoca ortográfica

Regressemos ao Acordo Ortográfico, a convite de uma entrevista que um dos pais do monstro deu ao Diário de Notícias. O que diz o professor Malaca Casteleiro? Que o que muda é “a imagem gráfica da palavra” e só temos agora de “fazer um esforço de adaptação”. Esta conceção da ortografia como engenhoca gráfica baseia-se numa total desvalorização da gramma (a inscrição) em favor da phone (e daí o privilégio concedido à representação fonética), como se aquela fosse uma mera representação desta. A filogénese da escrita mostra que esta é autónoma do oral, o que levou Barthes a afirmar: “Tudo se passa como se a escrita já tivesse sido inventada antes de ser posta em relação com a língua, antes de ser fonetizada.” Ora, este dado filogenético transpõe-se para o nível do indivíduo:: aprender a ler e escrever é entrar numa ordem ortográfica que transporta uma memória cultural e um imaginário que nos constituem, tal como a língua.  
É nesse sentido que a ortografia é sempre mais do que o design convencional das palavras: na ontogénese da consciência, há uma escrita que precede a fala (leia-se a crítica de Derrida a Saussure). E essa escrita acaba por se confundir, para cada uma de nós, com uma manifestação ortográfica, de um modo tão profundo como o sonho é uma espécie de texto que transcreve a imagem latente. É certo que a resistência a uma nova ortografia só pode vir de quem foi constituído pela ordem da ortografia anterior. Mas nem por isso ela pode ser vista com o simplismo do professor Casteleiro, que, com uma perna na Academia, outra na escola primária, e a cabeça numa órbita que não é a da Linguística, afirma: “Se pensarmos nas crianças que estão a aprender a escrever, para elas é muito mais fácil escrever sem as consoantes mudas.” Este álibi manhoso da literacia foi o mesmo que serviu para expulsar em larga escala os textos literários do ensino da língua.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 7.1.2012.

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