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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #174 (António Guerreiro): O CEO foi de baixa

Alguém que tentasse hoje examinar as mitologias quotidianas construídas pelos media, seguindo o exemplo de Barthes, haveria de se aplicar com tanta verve analítica na fábula para adultos do colapso do CEO do Lloyds Bank como Barthes se aplicou na análise da mitologia do escritor em férias. Por uma espécie de justiça imanente própria dos heróis, o nosso homem ‘fabuloso’, o protagonista de uma fábula, vive numa relação tão íntima e total com a sua missão – jamais poderemos reduzi-la a um trabalho – que contraiu a doença do sistema bancário onde está imerso: stresse ampliado por privação do sono. Moral da fábula: os mercados não dormem, mas um CEO precisa de dormir. Um super-homem que comprou dois bancos comerciais num fim de semana, enquanto o Lehman Brothers falia, que no primeiro semestre do ano passado pagou 60 mil milhões de libras ao Banco de Inglaterra, que geriu 12 bancos em três países, descobre-se subitamente humano e passa por uma “experiência de humildade”.  

Esta descoberta da condição humana é um topos obrigatório de toda a hagiografia, e em nada a fragilidade que ela implica tem um efeito de desmistificação. Pelo contrário, é aí que um CEO alia a sua ‘fabulosa’ – mítica – competência com a nobreza da sua humanidade e a finitude do seu corpo que também precisa de dormir. Em suma: aquilo que faz com que um herói ganhe espessura humana e seja selecionado pelo génio. E se há a musa dos poetas, há também a musa do CEO: a sua mulher. Mais do que uma figura de invocação, essa musa é o anjo da guarda, o espírito lúcido e benfazejo que não se deixa alienar por heroísmos, sejam eles vãos ou nobres, e leva o herói do nosso tempo até ao lugar onde começa o processo de reparação (como se diz também dos pecados), onde ele irá iniciar a sua “experiência de humildade”.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 14.1.2012.

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