Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #161 (António Guerreiro): O futuro está só nos detalhes

Um dos dados do mundo atual com o qual tivemos de nos familiarizar é o facto de a gestão económica, política e social ser feita na dimensão do futuro. Deixou, aliás, de haver futuro a partir do momento em que ele passou a ser totalmente colonizado pelo presente. A ciência da estatística, tendo adquirido um elevadíssimo rigor, permite antever tudo o que se vai passar, exceto os detalhes que são capazes de provocar verdadeiros desastres, como acontece na economia. Por isso é que o futuro deixou de ser outra coisa senão a catástrofe e, mais do que nunca, o bom Deus, neste mundo secularizado, está apenas alojado nos detalhes. A estatística e as previsões estão para o curso racional do mundo como o inconsciente está para a instância do Eu: é uma estrutura que tem o poder de sobredeterminar os nossos atos conscientes. E se há uma compulsão para a repetição dos mesmos erros é porque os atos falhados são inevitáveis. Sendo tudo sobredeterminado, a organização do mundo deixou de poder contar com o livro arbítrio.  
A grande palavra determinante da modernidade, “autonomia”, desapareceu. Não mudou de mãos, não ficou restringida a uns poucos: pura e simplesmente eclipsou-se. Esta é uma forma da harmonia universal que não se traduz exatamente na fórmula leibniziana segundo a qual vivemos no melhor dos mundos possíveis. A questão que se coloca é a de perceber que as previsões em função das quais se faz a gestão política e económica se tornaram quase uma ciência exata porque sobredeterminam o que se vai passar, até ao mais ínfimo pormenor. O futuro não é sondado por uma ciência rigorosa, é sobredeterminado por ela. Por isso é que deixou de haver política e há apenas gestão. E tudo o que chega de surpresa é uma catástrofe. Primeiro, com a comunicação eletrónica instantânea, perdemos o sentido da distância; agora, já vivemos em curto-circuito permanente: o futuro está a ser, o que significa que já foi.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 15.10.2011.

Sem comentários:


Arquivo / Archive