Ao pé da letra #160 (António Guerreiro): Kafka para economistas
Teve grande repercussão o facto de o ministro Vítor Gaspar ter citado o conto "Um Médico do Campo", de Kafka, para dizer que também para o responsável das Finanças "passar receitas é fácil, conseguir ser entendido pelas pessoas é difícil". Kafka conseguiu ver o seu nome ligado a coisas tão temíveis – kafkianas – que ouvir um ministro das Finanças evocá-lo até parece exercício de suprema crueldade. No entanto, Vítor Gaspar tinha à sua disposição, na obra de Kafka, um conto de onde poderia tirar uma citação muito mais pertinente, nas atuais circunstâncias. Trata-se de "A Colónia Penal", onde uma máquina de tortura inscreve palavras no corpo do preso relativas à pena. A dívida – também a soberana – contrai-se através de um ato de promessa: a de que será paga. Mas o performativo da promessa (que consiste em dizer “eu prometo” – e dizendo isto não estou a constatar uma ação mas a praticá-la) não constitui em si mesmo o reembolso da dívida.
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A promessa tem seguramente a garantia de instituições nacionais que são como “homens de palavra”, mas, sabemo-lo agora com exatidão, os credores estão munidos de máquinas terríveis, como as da colónia penal concebida por Kafka, para garantirem que a promessa seja cumprida e não se fique pelas palavras que fizeram dela um ato. O performativo da promessa implica e pressupõe uma mnemotécnica da crueldade e da dor que, à semelhança da máquina da colónia penitenciária de Kafka, escreve no corpo do endividado, dilacerando-o, a promessa de reembolsar a dívida. E a ferida vai abrindo à medida que há uma dilação da promessa. A dívida tornou-se assim uma laceração cada vez mais aberta nalguns corpos nacionais. Nietzsche também viria a propósito: “Grava-se algo com o ferro em brasa para o fixar na memória: ela só conserva o que não para de fazer mal.”
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 8.10.2011. |
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