Hermínio Martins, a erudição paradoxal
Hermínio Martins será certamente, dos poucos pensadores portugueses dignos desse nome, o mais mal conhecido de todos. Talvez porque viveu muitos anos fora, exilado numa qualquer universidade estrangeira (Oxford), talvez porque sempre circulou — melhor dizer, pairou — entre disciplinas com um à-vontade assombroso. De qualquer forma, é lamentável esse desconhecimento, pois da sua insuperável erudição e agudeza estamos bem precisados — nós que, com a mais desavergonhada ligeireza, pretendemos resolver todos os problemas que se nos deparam com exclamações do tamanho permitido pelas caixas de comentários. A quem vive de tais ilusões não convém, para não se assustar, defrontar-se com as suas notas de fim de texto que ocupam páginas inteiras, cada uma delas cheias do sumo de tantos livros bem espremidos. A nossa falsa erudição é de tal forma moeda corrente que quase nem acreditamos, quase somos levados a crê-la paradoxal, quando alguém consegue ainda pensar, consegue fazer viver uma quantidade infindável de elementos relevantes num texto vivo. Seria de esperar que um mundo crescentemente complexo exigisse pessoas dispostas a afrontar essa complexidade sem a ela ceder... Este sábio totalmente inesperado no nosso contexto, para além de um profundo sentido crítico, possui ainda, e em doses elevadíssimas, aquele que é o maior indicador de inteligência: um humor do mais acutilante, com grandes laivos de ironia e sarcasmo, de pendor por vezes de um delicioso cáustico, com o qual investe contra qualquer assomo conhecido ou anónimo de prepotência ou inconsciência intelectual ou científica, mas sem um pingo de arrogância. De resto, muito daquilo a que na sua obra, por força da clarividência, somos confrontados, seria simplesmente insuportável sem essa específica dinâmica libertadora que só humor permite. Por exemplo, naquele que será talvez o meu ensaio preferido de Experimentum Humanum. Civilização Tecnológica e Condição Humana, antologia de ensaios recentes que vem de ser publicada, ainda que se leia «Experimentos com Humanos, Guerra Biológica e Biomedecina Tanatocrática», uma descrição dos feitos e implicações da guerra biológica do Japão na Segunda Guerra Mundial, como as terrificantes aventuras de um Arthur Gordon Pym erudito percorrendo os meandros históricos praticamente desconhecidos da profunda promiscuidade entre a experimentação científica, a guerra e a medicina moderna, é também o lugar onde nos asseguramos que tempos houve — e, de alguma forma, não podemos deixar de lamentar a sua perda — em que os próprios médicos, antes de outros, se sujeitavam à sua imaginação experimental fulgurante. Um excerto, retirado da conclusão do referido ensaio: Há material mais do que suficiente nos casos históricos referidos para um amplo Livro Negro da Medicina e da Psiquiatria do século XX (eugenista ou não), comparável ao Livro Negro do Comunismo, sem falar de episódios e práticas duvidosas na medicina, cirurgia e psiquiatria civil. Ou para um Livro Negro dos “experimentos científicos” ou tecnológicos desumanos só do século XX (sem falar de certas práticas experimentais com animais, assunto curiosamente mais estudado que os experimentos amorais ou imorais, ou pelo menos duvidosos, sobre humanos). Poderíamos imaginar também um Livro Cinzento para listar tantos experimentos de valor científico discutível, mas implicando sofrimento humano, sem contestação, só nos últimos cem anos, na melhor das hipóteses devido ao “fanatismo da pesquisa”. É verdade que, antigamente, cientistas, especialmente biólogos, costumavam praticar auto-experimentos, experimentos perigosos, em si próprios [...] em vez de arriscar a vida, a saúde ou a integridade física dos outros. O filósofo Hans Jonas sugeriu que a experimentação sobre seres humanos devia ser restrita aos próprios cientistas experimentadores, tanto por razões científicas, porque a classe que desenha os experimentos estará em melhores condições para assegurar a probidade e relatar os resultados dos experimentos, como por razões éticas, para não pôr em perigo as vidas dos outros (fazendo coincidir a classe dos experimentadores com a classe dos experimentados), proposta muito pouco discutida, ao que parece. [...] (pp. 256-7) Parecerá talvez coisa pouca, um livro contra esta tempestade avassaladora, mas colmata a grave lacuna — como ele próprio escreve — da constatação da força dos ventos que sopram... O livro de Hermínio Martins Experimentum Humanum. Civilização Tecnológica e Condição Humana, editado pela Relógio D’Água, será lançado hoje, 20 de Junho, segunda-feira, pelas 18.30 horas, na livraria Almedina do Atrium Saldanha, em Lisboa, e apresentado por Viriato Soromenho-Marques, José Bragança de Miranda e José Luís Garcia. |
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