Ao pé da letra #144 (António Guerreiro)
Uma metáfora da doença marcou este ano o discurso do Presidente da República, no 10 de junho, quando disse que acreditava que os portugueses queriam ser curados da doença que afeta Portugal. As suas palavras inscrevem-se numa história das metáforas de má memória. A um Presidente da República não se exige conhecimentos de metaforologia, ainda que neste caso bastasse a intuição para perceber que estava a entrar num terreno perigoso. Mas essa metáfora jogo com outra dimensão semântica: ela atribui a Portugal qualidade de um ser biológico. Se quiséssemos procurar um antepassado ilustre para este pensamento (chamemos-lhe assim), poderíamos citar Oswald Spengler, quem em 1918 publicou “O Declínio do Ocidente”, onde defendia que a civilização ocidental, na sua história, cumpria um ciclo semelhante ao de um organismo: um ciclo “natural” de nascimento, crescimento e morte. Spengler imaginava-se assim a fazer um diagnóstico da civilização ocidental e a detetar os sintomas da sua decrepitude. | Semelhante tropismo biológico está presente na metáfora do Presidente. Vendo o país como um organismo vivo, Cavaco Silva vai ao encontro do pensamento mais reacionário do século XX (não apenas representado por Spengler). Faz mais do que isso: imagina-se como um pastor cheio de solicitude e preocupação pelo seu rebanho, vê o exercício da presidência como uma pastorícia e os seus discursos como pastorais. Ele quer a saúde e a salvação do rebanho, quer que a criação do parque aceite voluntariamente tratar-se. A isto poderia chamar-se biopolítica em estado bucólico. Mas talvez lhe possamos chamar a “síndrome de Mr. Chance”, em homenagem à personagem do filme de Hal Ashby, que chegou a Presidente dos Estados Unidos por fazer metáforas que ninguém entendia. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 18.6.2011. |
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