Ao pé da letra #143 (António Guerreiro)
Os primeiros-ministros demitidos pelo voto têm uma hipótese de salvação relegada para mais tarde, para o dia do Juízo Final da História. É o que sugerem aqueles que, no dia de eleições (e é quase sempre nesse dia) afirmam que “A História encarregar-se-á de fazer justiça a X”. Ou então augura-se que nesse dia ficará definitivamente decidido que não há redenção possível para X e estão-lhe reservadas as penas eternas e terríficas. Num caso como noutro (e eles são exatamente simétricos) atualiza-se a representação que encontramos numa anotação de Kafka: o Juízo Final — da História, neste caso — como uma corte marcial. Quem ousa fazer estas proferições enfáticas, como quem antecipa um veredicto, está a colocar-se exatamente no lugar de juiz todo-poderoso, à imagem do que ele julga ser o procedimento da História. | É preciso dizer que esta conceção começa por ser ingénua e, nalguns casos, pode acabar por se tornar criminosa. Não há nenhum ditador, nenhum energúmeno ao serviço do ideal da pátria e da nação, nenhum providencial homem de Estado, que não se sinta a cumprir um dever que a História, no seu Juízo Final, há de ratificar, aplaudir e glorificar para a eternidade. É coisa para obscurantistas esta ideia de que pessoas e acontecimentos ditos “históricos” serão submetidos a um juízo neutro, omnisciente e irrevogável por uma instância tribunalícia chamada História que, assim concebida, é a versão teológico-política de uma ordem profana, que nos desvia do tempo e da história dos homens. Porque esta é sempre obra de historiógrafos que não têm o poder de submeter ninguém a um Juízo Final e quando se arrogam esse poder passam a ser presumidos profetas como os patéticos políticos do Juízo Final. O historiador só é um profeta na definição paradoxal de Schlegel: um profeta que olha para trás. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 10.6.2011. |
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